Fundada em 1947, na rua Augusta, em São Paulo, a Livraria Cultura está presente hoje em Brasília, Campinas, Curitiba, Fortaleza, Porto Alegre, Recife, Ribeirão Preto, Rio de Janeiro e Salvador.
Em 19 de julho de 2017, adquiriu a operação da Fnac no Brasil. No final do mesmo ano, comprou o marketplace de livros Estante Virtual.
Porém, em outubro de 2018, entrou com pedido de recuperação judicial, após fechar lojas, reduzir o quadro de funcionários e encerrar as atividades da Fnac no Brasil.
Em abril de 2019, os credores aceitaram um plano de reestruturação das dívidas da empresa.
Seus funcionários estão vivendo uma situação dramática, que relatam na carta aberta que nos enviaram e publicamos.
“Esta carta aberta é um último grito de socorro dos funcionários da Livraria Cultura que estão sofrendo pressão, perseguição, assédio moral e abuso de poder”, afirmam.
“Com seu plano de tirar a empresa do buraco, o empresário e herdeiro Sergio Herz pode estar enfiando todo o legado da história belíssima da Livraria Cultura em outro buraco”, prosseguem.
“Um buraco mais embaixo, o buraco da vergonha, da irresponsabilidade social e moral”, completam.
Abaixo, a íntegra da carta aberta. Um relato doloroso.
MASTER CLASS DE FIM DE MUNDO COM SERGIO HERZ: LIVRARIA CULTURA PARA SAIR DE UM BURACO ENTRANDO EM OUTRO
“Boa tarde, estou aqui hoje pra trazer uma provocação para vocês”, começou ele cordial e sorridente – imagem rara de se ver de uma pessoa que nem sequer cumprimenta os funcionários em suas visitas às lojas – , parecia feliz na reunião que aconteceu na última quinta-feira (06/02).
Feliz talvez porque no dia anterior teria recebido uma bolada vendendo o banco de dados do site Estante Virtual (empresa do 3H Participações S.A., holding da família Herz) para a gigante Magazine Luíza, ou feliz simplesmente por saber que estava vendo o rosto de muitos ali pela última vez.
“Vocês acham que todos aqui são realmente necessários?”
Então continuou com sua provocação aparentemente inofensiva: “Nesta loja eu tenho 17 vendedores, vocês acham que todos aqui são realmente necessários?”
Atônitos, os funcionários permaneceram em silêncio, pois perceberam para que lado a conversa seria levada.
Para muitos funcionários ali, aquela era a primeira vez que via ou falava diretamente com “o chefe”, mas a fama que o precedia não era das melhores.
As dicas de outros funcionários eram “não responda”, “não questione”, “não adianta dizer nada porque ele não ouve”, “ele não deixa ninguém falar”, “ele é autoritário como um déspota e birrento como uma criança de 3 anos”.
Os funcionários estavam com medo, ele bota medo. Principalmente porque já estavam circulando as histórias da mesma reunião em outras lojas nos dias antecedentes.
“Você prefere seu FGTS ou o seu emprego?”
As falas dele facilmente se enquadrariam como assédio moral.
Falas baixas, como quando uma funcionária que trabalha com a limpeza da loja questionou sobre quando e como o FGTS – que não é pago desde abril de 2019 – iria ser liberado e a resposta foi simplesmente “Você prefere seu FGTS ou o seu emprego?”
O que para muitos soava como um boato, logo seria comprovado da pior maneira possível.
Ao ver que ninguém tinha coragem (ou estômago) de responder ao seu questionamento inicial, ele mesmo concluiu:
“Não, não são todos necessários. A maioria é ineficiente e não faz o seu trabalho. Numa equipe de 17, se eu demitir 10 e continuar com apenas 7 a loja daria o mesmo faturamento, de acordo com esta planilha”.
A planilha que ele tinha em mãos era o novo terror dos vendedores: o ranking individual de vendas, coisa que parece comum em outras lojas do varejo, mas que era uma novidade na Livraria Cultura.
Antes dessa medida, iniciada em meados de novembro do ano passado, os vendedores não eram avaliados individualmente quanto a números absolutos de venda, até porque as vendas não são comissionadas.
Se a loja bate a meta do mês, todos recebem uma bonificação padronizada, independente de quem vendou mais ou não. Afinal de contas, quem vendeu menos também ajudou para o resultado, arrumando prateleiras ou de outra forma.
Essa dinâmica de trabalho possibilitava melhor atendimento, pois um cliente era facilmente transferido para um vendedor especialista em certo gênero literário quando esta era sua necessidade, assim como era comum mais de um vendedor auxiliar o mesmo cliente para este receber indicações variadas.
“A maioria é ineficiente e não faz o seu trabalho”
O foco na experiência do cliente dentro da loja acabou quando decidiram, sem explicação clara, metrificar em números absolutos quanto cada vendedor fazia por dia.
A medida não foi bem recebida pelos funcionários das diversas lojas espalhadas pelo Brasil porque:
1º) instiga a competitividade tóxica comum em outras lojas de varejo; nelas, encontramos ambientes verdadeiramente hostis para se trabalhar em “equipe”;
2º) causa constrangimentos constantes, já que, divulgada amplamente, expõe a todos os funcionários os resultados diários de toda a equipe;
3º) os vendedores das últimas colocações eram sempre os do horário da manhã (normalmente de menor fluxo de clientes) e aqueles designados para áreas de loja com menor fluxo ou menor apelo de vendas;
4º) o registro da venda incluía uma etapa a mais na burocracia , atrapalhando a experiência do cliente, que faz reclamações constantes sobre essa nova medida, às vezes até desiste da compra;
5º) sem dúvida, o motivo maior de descontentamento é que, na correria do dia a dia, seria impossível o próprio vendedor registrar todas as suas vendas, fazendo com que os números da famigerada planilha fiquem muito abaixo do que realmente vendem.
Sem contar outros problemas da própria ferramenta que, no final do dia, faz com que grande parte das vendas passasse como “autoatendimento”, ou seja, como se ninguém tivesse auxiliado aquele cliente, quando a realidade é bem diferente.
“Como meu rendimento pode ser avaliado desta maneira?”
“Certa vez fiz uma venda de 4 itens e registrei no meu nome. No caminho até o caixa, o cliente lembrou que precisava de mais um livro e solicitou ao vendedor mais próximo, que, ao incluir este último item com sua senha, abocanhou os 4 livros do meu atendimento que havia durado quase 30 minutos. Em apenas 1 minuto ele tinha feito uma venda de 5 itens e eu, de acordo com a planilha, havia passado a última meia hora sem dar resultado. Como meu rendimento pode ser avaliado desta maneira?”, questiona uma vendedora sobre os problemas dessa métrica.
“Tudo o que essa mãe quer ouvir é ‘vá direto ao caixa’”
“Ao atender no setor infantil fica muito complicado fazer todos os registros. Muitos dos clientes são mães, com crianças de colo, filhos pequenos pedindo para ir ao banheiro ou chorando. Tudo o que essa mãe quer ouvir é ‘vá direto para o caixa’. E muitas vezes é isso que digo. Priorizo a experiência do cliente e tenho empatia com quem estou atendendo. Perco as contas de quantas vendas que faço não são registradas por motivos como este. O atendimento que damos ao cliente hoje é o único diferencial em relação às lojas virtuais, mais baratas e cada vez mais confiáveis”, relata um vendedor que, apesar de receber inúmeros elogios de seus clientes, se encontra nas últimas posições do ranking daquela loja.
“Quase ninguém confia mais em fazer encomendas conosco”
“É cobrado dos vendedores que vendam cada vez mais, quando a loja em si está perdendo clientes a cada dia. Atualmente, na Livraria Cultura, há um desfalque enorme de produtos, pois as editoras que levaram calote, não entregam mais aqui. Inclusive a orientação é dizer aos clientes que esses livros estão esgotados, empurrando-os para o serviço da Estante Virtual. As poucas editoras que entregam nos mandam seus lançamentos meses depois da publicação. Quase ninguém confia mais em fazer encomendas conosco, porque são entregues sempre com atraso, isso quando são entregues. Mesmo itens vendidos por pré-venda no site, o dinheiro não é utilizado para comprar o item. Em consequência, o cliente que pagou um produto antes do lançamento só vai recebê-lo meses depois, quando já poderia ter adquirido facilmente em outras livrarias. Credibilidade zero. Muitos vendedores simplesmente pararam de oferecer encomendas com vergonha dos inúmeros pedidos em atraso ou cancelados. Esses clientes não voltam mais aqui”, relata um vendedor sobre a falta de transparência da livraria com os clientes.
“Preços dos produtos subiam em média R$ 6 nos finais de semana”
“É inegável que os preços da Amazon são mais baratos. No nosso caso, custam metade do preço em loja. Muitos clientes sabiam disso, mas ainda assim compravam conosco para ajudar a manter a livraria aberta. Mas muitos simplesmente pararam de frequentar quando perceberam que, no final do ano passado, os preços de todos os produtos subiam em média R$ 6 durante os finais de semana. Depois, durante a semana tudo voltava ao preço normal. Clientes que reservavam um livro no domingo e só retiravam na segunda-feira para evitar o preço mais alto. Em 2020, os preços de final de semana chegaram para ficar. Agora, todo dia é preço de final de semana. Os clientes sentiram na pele esse aumento salgado, quase não se encontra mais livro de R$ 30, nem livro de bolso. Acho injusto que, com falta de produto, aumento significativo dos preços e precarização do atendimento, a culpa da livraria estar indo mal seja dos vendedores”, relata uma vendedora indignada que revela que ela própria parou de comprar livros lá.
“Vender dados de clientes dá mais dinheiro do que vender livros”
Um outro vendedor conta:
“Há praticamente um ano eu estava sem crise de ansiedade, até que iniciaram as comparações e a pressão. Então, junto vieram falta de ar, insônia, receio de perder o emprego a qualquer momento. Para todos os funcionários estava muito claro que essa prática repentina de metrificação individual seria utilizada como nota de corte num futuro próximo.
O problema para mim era: como uma metrificação aplicada às pressas, que não produz números reais, seria utilizada como avaliação de rendimento de um indivíduo com inúmeras funções além das vendas? Como querem que meu rendimento não caia?
Eu entendo que para o dono da empresa o que importa são números e lucro, mas com uma metrificação tão falha, alguém que vende muito pode estar em posição péssima no ranking e alguém que vende menos e registra mais estar no topo.
Afinal de contas, quem atendeu 1 cliente com calma pode ter mais chance de registrar essa venda do que quem estava atendendo 4 clientes diferentes e só teve tempo para registrar a última venda ou nenhuma delas. Para mim, estávamos sendo comparados não por quem vendia mais ou menos, mas sim por quem metrificava mais ou menos e isso não fazia sentido. Punir quem é menos metrificado?
Meu palpite: com a venda da cartela de clientes do Estante Virtual, viram uma oportunidade de ouro para transformar a Livraria Cultura de lugar que vende livros para lugar que vende dados dos clientes.
Vender dados de clientes dá mais dinheiro do que vender livros. Isso faz sentido considerando a pressão que estamos sofrendo para registrar nossas vendas. Temos que fazer antes o cadastro do cliente, pedindo nome, idade, telefone, endereço e email.
Na minha opinião, só vai continuar trabalhando lá quem conseguir coletar mais dados de clientes em menos tempo. Assim, quando ninguém esperar, a livraria será vendida como um grande mailing para outra empresa”.
“Os próximos alvos seriam os auxiliares de loja e a equipe de limpeza”
Voltemos à reunião. A primeira medida do patrão para cortar gastos é sempre demitir. E, no caso da livraria, com essa planilha em mãos, ele teria uma desculpa perfeita para fazer grande corte. Mas cortar o quadro de vendedores seria apenas o começo. Os próximos alvos seriam os auxiliares de loja e a equipe de limpeza.
“Esse negócio de auxiliar não vai existir mais, foi um erro”, esbravejou o herdeiro Herz.
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