Do Estadão – A implementação do sistema de reconhecimento facial nas catracas dos estádios do Brasil reduziu os casos de cambismo, mas não foi capaz de eliminar totalmente a ação dos cambistas nas principais arenas, incluindo Allianz Parque, Neo Química e MorumBis.
O Estadão recebeu relatos de cambismo e constatou, ao acompanhar a três partidas de Corinthians, Palmeiras e São Paulo como mandantes, todas com ingressos comprados de cambistas, que há brechas no sistema de venda de ingresso dos principais clubes do País que permite que cambistas possam seguir agindo, embora não do método mais tradicional, mesmo com a implementação da biometria facial.
A instalação do reconhecimento facial nos estádios com capacidade superior a 20 mil torcedores é lei, em vigor desde 20 de junho. A Lei Geral do Esporte tipifica o cambismoem eventos esportivos como crime com pena de um a quatro anos de reclusão, além de multa. A prática de revender ingressos por um valor maior que o original também é mencionada em artigos da Lei dos Crimes contra a Economia Popular.
Os cambistas geralmente operam em conjunto e a maioria deles vende ingressos para partidas de todos os times da Série A, além de shows e outros eventos. Eles aceitam pix – alguns até cartão de crédito – e agem tanto na porta das arenas como pelas redes sociais, prática mais comum.

Corinthians tem cambismo ‘sofisticado’ com fraude e dados de terceiros
No Corinthians, cambistas utilizam dois principais métodos para driblar o sistema oficial de venda de ingressos. O primeiro consiste no compartilhamento de login e senha de um torcedor com o cambista, que passa a reservar os bilhetes diretamente na plataforma. O segundo – e mais grave – envolve o uso indevido de dados pessoais de terceiros que não têm qualquer relação com o esquema.
A reportagem adquiriu um ingresso com um cambista que usou o nome, CPF e outras informações pessoais de uma pessoa alheia ao golpe para criar uma conta na plataforma oficial do clube. Após o cadastro, é enviado um link para o registro da biometria facial. Assim, o ingresso é emitido em nome de um terceiro, e o comprador consegue acessar o estádio utilizando sua própria biometria facial normalmente, consumando a fraude.
“Cambismo não está extinto, mas diminuímos em 95%”, diz diretor de tecnologia de Corinthians
Marcelo Munhões, diretor de tecnologia do Corinthians, calcula que o clube conseguiu combater 95% do cambismo, mas ainda sofre com a prática.
“Você vai ver a gente oferecendo ingresso? Vai. Você vai ver ingresso vendendo por redes sociais? Vai. O cambismo está extinto? Não. Mas nós reduzimos”, afirma. “Vai tendo uma vulnerabilidade, a gente vai fechando, eles vão descobrindo um outro meio, a gente vai travando e aí nisso vai ser o nosso dia a dia”.
Mais de oito mil ingressos eram desviados por jogo do Corinthians antes da implementação da tecnologia, conforme informações divulgadas por Romeu Tuma Júnior, presidente do Conselho Deliberativo do clube.
Conforme Munhoes, existem 2 milhões de cadastros no sistema de venda de ingressos do Corinthians e 6 mil deles foram bloqueados recentemente porque eram contas falsas ou que apresentavam algum tipo de fraude. Ele estima que, antes da adoção da facial, ao menos 20 mil ingressos por jogo eram vendidos por cambistas, o que fazia o clube deixar de arrecadar cerca de R$ 1 milhão por partida.
– O cambismo no Corinthians hoje está sofisticado. O cambista é como se fosse um concierge. Por falta de informação, alguns torcedores não sabem como é simples comprar um ingresso e recorre aos cambistas. Eles fazem um trabalho que o próprio torcedor poderia fazer.
Marcelo Munhoes, diretor de tecnologia do Corinthians
“O aprimoramento é contínuo, não pode deixar de existir. Eles (cambistas) vão descobrindo novas maneiras e o Corinthians vai bloqueando”, observa o dirigente.
No Palmeiras, o primeiro clube do mundo a adotar biometria facial em todo o estádio, também há duas formas principais de fraudar o sistema. Na primeira, o cambista compra o ingresso com antecedência, muitas vezes pagando por um plano de sócio-torcedor para ter prioridade, e, quando aparece um comprador, cancela o bilhete que havia adquirido.
Em seguida, o cambista solicita o login e a senha da conta do torcedor interessado para acessar o perfil rapidamente e transferir o ingresso para esse usuário, sempre por um valor bem acima do pago originalmente. O bilhete passa a constar no cadastro do comprador; bastando a ele comparecer ao estádio e validar a entrada pela catraca com a biometria facial.
“Geralmente, esses caras trabalham com dois computadores ou com dois dispositivos ao mesmo tempo. Ele cancela um e já atualiza a página para pegar o outro”, explica Ricardo Cadar, fundador da Bepass, empresa que opera o sistema de reconhecimento facial no Allianz Parque e também no MorumBis. “O pessoal do Palmeiras já sabe que que que existe, mas é impossível você impedir isso”.
A segunda forma é mais simples: basta ao cambista pagar o Passaporte Allianz Parque, programa vendido pela WTorre que dá direito ao comprador de ir a todas as partidas do Palmeiras na arena durante a temporada. O titular tem a opção de designar um convidado para utilizar seu assento, abrindo uma brecha para os cambistas, que só precisam do CPF do torcedor interessado para repassar o ingresso por valores exorbitantes a quem está disposto a pagar.
O Palmeiras disse ao Estadão que a plataforma de venda de ingressos “passa por constantes atualizações, que permitem ao clube identificar condutas suspeitas praticadas por indivíduos cadastrados” e relatou, sem detalhar, que “centenas de cambistas e pessoas que compraram ingressos de forma ilegal” tiveram seus acessos à plataforma bloqueados neste ano.
Também afirmou que busca aperfeiçoar seu sistema com soluções tecnológicas, como “melhorias em softwares, documentoscopia e ajustes de processos”.
Sobre o Passaporte, Palmeiras e WTorre informaram que é proibida a revenda de ingressos pelo cliente do programa e que existe “um trabalho conjunto desenvolvido entre as partes com o intuito de proteger cada vez mais os torcedores do Palmeiras, incluindo o bloqueio de usuários que utilizam indevidamente o programa Passaporte para praticar o cambismo”.
O São Paulo oferece três planos de sócio-torcedor que permitem ao associado adicionar um convidado por partida, recurso semelhante ao Passaporte do Palmeiras. Essa funcionalidade abriu uma brecha para cambistas, que se associam e vendem o ingresso extra por valores muito acima do original, como constatou a reportagem em dois jogos recentes no Morumbi. O comprador precisa apenas informar seu CPF e cadastrar sua biometria facial para ter acesso ao estádio.
Procurado pela reportagem, o São Paulo foi o único que se negou a explicar as brechas em seu sistema de comercialização ingressos.
‘Os cambistas, hoje, atuam como despachantes’
O fundador da Bepass, que opera também no Maracanã e nos estádios de Atlético-MG, Botafogo, Grêmio e Santos, alega que o que existe hoje são brechas nos sistemas. “O cambismo como existia antigamente acabou. A tecnologia impede 100% aquele cabimento de repassar o ingresso”, defende, citando que é impossível a transferência direta de ingresso entre os torcedores.
Aquele cambismo de que eu compro o ingresso associado à minha face e transfiro esse ingresso para você não existe mais. Isso é impossível. O que estão existindo são essas brechas que a próprio relação comercial entre o torcedor e o estádio ou o torcedor e o clube permitem.
Ricardo Cadar, fundador da Bepass
Na avaliação do empresário, hoje, os cambistas agem como se fossem despachantes. “Mas é cambismo porque ele está te cobrando mais pelo ingresso”.
A tecnologia que a Bepass e todas as outras empresas oferecem autentica a identidade comparando as características exclusivas do rosto humano com os dados disponíveis no banco de dados.
O sistema armazena as impressões faciais como chaves de autenticação e verifica se o usuário possui autorização para acessar o local. Se autorizado, o acesso é liberado automaticamente por meio da abertura de portas ou catracas, conforme as permissões predefinidas.
A estimativa é de que, juntos, os clubes da Série A investiram mais de R$ 100 milhões com a ferramenta. O custo da operação, incluindo montagem das catracas, varia entre R$ 4 e R$ 9 milhões, a depender do tamanho de cada estádio.









