Do UOL – Secretário de Agricultura e Abastecimento do governo Tarcísio de Freitas (Republicanos), o produtor rural Guilherme Piai (Republicanos) tem negócios com uma empresa que elabora documentos cuja aprovação depende da pasta que ele próprio comanda.
Trata-se da Ambientale Ativos Florestais, da família Maggi, uma das gigantes do agronegócio no país.
A consultoria atua como uma espécie de despachante no processo de obtenção do CAR (Cadastro Ambiental Rural), registro público obrigatório para imóveis rurais, e no atendimento a órgãos e secretarias de estado.
A relação teve início em junho de 2024, quando Piai e seu pai, Sergio Luiz Leal Filizzola, abriram a empresa Fazenda Água Cristalina Ativos Ambientais SPE Ltda, que tem a Ambientale como sócia com 40% das ações.
Na época, ele já era secretário, o que, segundo especialistas, pode configurar conflito de interesses.
As empresas têm o mesmo endereço em São Paulo e dividem o mesmo domínio de email. A reportagem esteve no local, mas a entrada não foi autorizada.
A Ambientale não respondeu às tentativas de contato da reportagem por email e telefone.
Segundo Piai, a sociedade se resume a um projeto: a monetização de uma fazenda de mil alqueires da família em Paranaíta (MT). “Não há qualquer conflito de interesses nisso”, afirmou ao UOL.
O secretário também ressaltou que não acompanha de perto a execução do projeto, avaliado em R$ 24 milhões.
“Meu pai me pediu para fazer parte da sociedade. Me tornei sócio da Ambientale porque meu pai gostou da empresa depois que ela fez um trabalho técnico na fazenda que foi comprada antes de eu nascer”, explicou (leia mais abaixo).
Documento encaminhado pela própria assessoria do secretário indica que a fazenda foi comprada por seu pai em 1993, com escritura lavrada em 2019.

Cadastro ambiental pode custar até R$ 20 mil
No topo da lista de serviços oferecidos pela Ambientale, segundo seu site oficial, está justamente a obtenção do CAR e “todo o processo de consultoria para legalização e regularização ambiental de um empreendimento rural ou urbano junto aos órgãos competentes”.
Em São Paulo, o órgão competente é a secretaria liderada por Piai.
“Como secretário, não tenho ingerência nenhuma ou autonomia sobre a aprovação de CARs”, diz ele.
A emissão do cadastro é gratuita, mas a documentação —que pode incluir, por exemplo, fotos aéreas e levantamento topográfico— costuma ser elaborada por empresas segmentadas, como a Ambientale.
O UOL apurou que os preços cobrados por empresas do ramo são muito variados e dependem basicamente das demandas de cartório. Se a papelada estiver em dia, o CAR custa entre R$ 3.000 e R$ 5.000. Caso contrário, pode chegar a R$ 20 mil.
Quando Piai assumiu o cargo, em setembro de 2023, havia 25 mil cadastros com análise concluída no estado. Hoje, são 185 mil, segundo acompanhamento da CPI (Climate Policy Initiative), organização que monitora os dados nacionais. A alta é de 640%.
A aceleração desse processo é uma das metas de Piai, que promete analisar e validar 100% dos cadastros possíveis até o final de 2026. A taxa atual está em 42%.
Principal instrumento do Código Florestal de 2012, o CAR é um documento obrigatório para imóveis rurais. Serve de condição básica para adesão ao PRA (Programa de Regularização Ambiental), destinado à adequação das propriedades à legislação ambiental.
O cadastro também é exigido para pedidos de acesso a crédito rural, seguro agrícola, monitoramento do combate ao desmatamento e compra das chamadas “terras devolutas”.

Consultoria faz compensação ambiental
Além de elaborar os pedidos de CAR, a Ambientale oferece serviços de orientação para atendimento de todas as “exigências da legislação vigente”.
Isso porque a validação do cadastro pode identificar passivos ambientais que precisarão ser “corrigidos” com ações de regeneração natural, recomposição ou compensação de áreas degradadas.
A regularização desse plano inclui a assinatura de um termo de compromisso com o órgão ambiental, que, no caso, é a Secretaria de Agricultura.
No Instagram, a Ambientale classifica a atuação da pasta como um “sucesso nas validações de CARs em São Paulo”.
Na legenda de uma foto de Piai com os dirigentes, postada em novembro de 2024, a empresa afirma que a gestão estadual na área é “eficaz” e demonstra “compromisso ambiental”.
Quatro meses antes do encontro com Piai, os diretores Sergio Maggi e Roberto Maggi haviam sido recebidos no Palácio dos Bandeirantes pelo secretário da Casa Civil, Arthur Lima.
Mas a proximidade é anterior. Em outubro de 2023, apenas um mês após assumir o cargo, Piai comandou uma reunião em seu gabinete para debater maneiras de facilitar o CAR. Entre os convidados estavam Roberto Maggi e Denis Storani, diretores da Ambientale. À reportagem, o secretário afirmou que Denis é representante do Crea (conselho de engenharia e agronomia) e que recebe diversas empresas do setor. “A gente escuta a iniciativa privada aqui.”
Adriana Cecílio, professora de direito constitucional da Uninove, explica que há conflito de interesse quando o agente público atua em processo que envolva ele próprio, parentes ou pessoas jurídicas das quais ele seja sócio, diretor ou acionista.
“Esse entendimento está claro em decreto assinado pelo governador Tarcísio em abril deste ano. Diante do exposto, entendo que cabe à Controladoria Geral do Estado analisar a conduta do secretário e instaurar um PAD (Processo Administrativo Disciplinar) caso considere a atuação dele como viciada”, afirma.

Só SP e 2 outros estados atribuem CAR à Agricultura
Desde 2019, por decreto do então governador João Doria (à época no PSDB), a concessão do CAR paulista é atribuição da Secretaria de Agricultura.
Levantamento feito pelo UOL mostra que somente outros dois estados (Espírito Santo e Tocantins) seguem essa organização. Nos demais 23 estados e no DF, a atribuição é de órgãos ambientais, como secretarias ou institutos.
“Passar o CAR para a agricultura é entregar o galinheiro para a raposa”, afirma o advogado Luis Balieiro, especialista em direito ambiental.
Isso porque a exigência foi criada para permitir aos órgãos de proteção fiscalizar e monitorar o uso do solo e impedir ações, por exemplo, de desmatamento ilegal.
Para validar um CAR é preciso fazer uma revisão topográfica da área in loco e demarcar o que é considerado reserva legal no terreno.
“Toda propriedade rural precisa ter uma porcentagem do terreno declarado como reserva legal [onde não é permitido desmatar]. No estado de São Paulo, esse índice é de 20%, independentemente da área declarada”, “, diz o geógrafo Thomas Ficarelli, da consultoria Teraviz.
“Quem não tem 20% pode precisar fazer acordos para compensações ambientais, como reflorestamento, em outras regiões. Embora a lei federal permita, isso não foi regulamentado no estado de São Paulo.”

Secretaria de Piai negou acesso a dados de CARs
Diferentemente de outros estados onde é possível verificar quem fez o pedido do cadastro, em São Paulo os dados não estão disponíveis.
No Pará, por exemplo, é possível consultar junto à Secretaria de Meio Ambiente e Sustentabilidade o nome de quem abriu o pedido (um profissional de engenharia agronômica, por exemplo), o nome de quem terá o cadastro (o proprietário), a geolocalização do terreno e a porcentagem de área de preservação permanente ou reserva legal, entre outros dados.
Segundo a geógrafa Fernanda Ferreira Antelo, doutora pela UFRRJ (Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro) e especialista em análise ambiental e gestão do território no Pará, a sociedade civil precisa de informações e transparência para monitorar o assunto.
“Sendo terras do Estado, o interesse público é determinante e os dados deveriam ser abertos”, diz o advogado Marc Stalder, sócio da área imobiliária do escritório Demarest.
O UOL pediu dados dos CARs paulistas via LAI (Lei de Acesso à Informação) à Secretaria de Agricultura no fim de setembro.
“Nem todos os dados solicitados podem ser fornecidos”, respondeu o órgão, indicando que os dados públicos poderiam ser consultados num site gerido pela pasta. Mas o endereço informado só permite a checagem do número “ID” de um CAR, sem qualquer informação sobre o cadastro.
Não é possível, portanto, levantar quantos CARs validados pela secretaria foram apresentados pela Ambientale, a empresa de ativos florestais ligada a Piai.
O UOL também perguntou ao secretário quantos pedidos de CAR foram abertos pela Ambientale e aprovados pela secretaria. Piai afirmou que os dados completos não podem ser publicados em respeito à LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais).
Em nota, a Secretaria de Agricultura e Abastecimento afirmou que o secretário Guilherme Piai não tem qualquer vínculo comercial ou societário com a empresa Ambientale Ativos Ambientais, que ele não participou da reunião mencionada na Casa Civil e que a empresa Fazenda Água Cristalina é uma SPE (Sociedade de Propósito Específico) criada exclusivamente para a certificação e registro de CPR Verde de uma propriedade integralmente preservada, localizada em Paranaíta, em Mato Grosso.
“A iniciativa não tem qualquer relação com a Secretaria de Agricultura e Abastecimento de São Paulo, nem com o CAR (Cadastro Ambiental Rural), que segue estritamente as diretrizes do Código Florestal e dos órgãos ambientais competentes”, destacou a nota.
Procurada também, a Secretaria de Comunicação do governo Tarcísio de Freitas não respondeu ao contato da reportagem.









