Por Michelle Prazeres, do UOL – Se você ler ou ouvir a palavra nuvem, o que vem primeiro à sua mente? Uma nuvem branquinha no céu em formato divertido ou um ícone em formato triangular da ferramenta de armazenamento virtual?
Se eu falar em memória, isso te remete à sua capacidade de cultivar e resgatar lembranças ou você vai pensar primeiro em quantos gigabytes tem seu dispositivo, seja ele um computador ou um celular.
E redes? O que são redes? Para mim, que sou pernambucana, é aquele objeto magnífico de promoção do descanso. Mas talvez você tenha lido esta palavra e encontrado outro significado: as redes que são “sociais” no mundo digital.
Conexão, então, nem se fala. Eita palavrinha desgastada. Conexão virou tudo. E nada. Originalmente, ela sugere vínculo, laço, tessitura, diálogo, troca. Mas terminou virando sinônimo de internet, wi-fi, capacidade de um dispositivo de estar em rede, na rede. Aquela outra rede. Não a de descansar.
São inúmeras as palavras que podem entrar neste rol, mas a última que eu queria trazer para esta lista é ‘comunidade’. Comunidade é palavra tão linda. Vem de comum. Comungar, Comunhão. Construir comunidade é construir laços, vínculos genuínos, íntimos, de apoio e suporte, de vida coletiva. Comunidade virou qualquer grupo de pessoas conectado (olha ela aí: a conexão) por uma estrutura digital a partir de um interesse comum.
E nem são mais aquelas comunidades divertidas do extinto Orkut, em que a gente se conectava com muito humor. Comunidade se banalizou como produto. Hoje tem gente que trabalha com “community building”. Gente! Fábrica de comunidade. É a transformação da comunidade em mercadoria, em produto, em serviço, em algo a ser consumido. E não a ser vivido ou experimentado como amparo e ancoragem afetiva.
A transformação do sentido destas palavras não é um acaso. O universo digital nasceu a partir de espelhos do mundo tal qual o conhecemos. Hoje, este mundo está absolutamente integrado ao nosso, de modo que nossa experiência é marcada pela cultura digital. As tecnologias não são apenas dispositivos. Elas carregam modos de viver, de ser e também de nomear a realidade.
Meu filho mais velho me diz que identifica que uma pessoa é 40+ quando ela diz que vai “entrar na internet”. Não entramos mais na internet. A internet está entranhada em nós. Somos – como estas empresas gostam de dizer – “always on”. Ou seja: estamos conectados (este tipo de conexão, a tecnológica) 24 horas por dia, 7 dias por semana.
Pois bem. Se este universo nasceu inspirado na nossa vida e de alguma forma foi muito competente em espelhá-la, eu diria que existe um projeto de nomeação para que algumas palavras ganhem novos sentidos, ligados a este universo tecnológico-maquínico e menos ao universo humano-vital.
As bigtechs mataram algumas palavras.
Ou – no mínimo – lhes roubaram vida.
E se queremos descolonizar a vida colonizada por estas empresas e pela lógica digital, precisamos descolonizar a linguagem (na mesma linha daqueles memes ótimos que brincam com a cafonice que é chamar de bowl a tigela, quando temos a lindeza da palavra cumbuca).
Como pessoa que trabalha com nomeação (afinal, fazer pesquisa e ciência é também isso) e se dedica a pensar nas palavras, acredito que elas não são apenas “tradutoras”; elas também plantam sentidos. Parte do caminho relacionado ao letramento digital e à leitura crítica deste universo digital passa por disputarmos palavras e termos que são fundamentais para nós. Não podemos deixar nossas palavras serem totalmente capturadas por esta lógica.
Alguns dirão que é um capricho.
Outros dirão que sou chata.
Sou mesmo.
E penso que nossa língua não é neutra.
E parte do projeto de colonização digital que estamos vivendo passa pela colonização do nosso repertório.
Esse projeto colonizou nosso pensar e nosso dizer. Colonizou as redes, nuvens e conexões e também as janelas, as pastas, os arquivos.
Janela não é mais aquela lateral do quarto de dormir cantada por Milton na letra de Fernando Brant e Lô Borges. É um sistema operacional. Ou seus componentes. Ou um “pop-up” na sua tela. Ou ainda um “link” que te leva para o próximo conteúdo.
E compartilhar? Que não é mais a partilha de nada comum – nem tempo, nem espaço, nem comida -, mas “passar para a frente” ou retransmitir um conteúdo que te engajou. E engajar… o que virou a ideia de engajar? Do ativismo ao clique. Engajado sempre foi alguém politizado, interessado por bandeiras sociais, pessoa dedicada ao coletivo. Virou sinônimo de métrica. Os famigerados números de engajamento nas plataformas digitais.
Descolonizar é também se perguntar o que e quem (e, portanto, quais interesses) moram em cada nova palavra e em cada sentido que vem sendo atribuído a “velhas” palavras. Que tal fazer isso sempre que uma velha palavra aparecer com outro sentido? Ou quando uma palavra em inglês for usada para nomear algo que tem um nome em português? Ou quando uma nova palavra surge para denominar algo para que já temos um bom nome?








