por Élio Gaspari
Num artigo em que defendeu o mandato de Dilma Rousseff e condenou “a hipocrisia como tradição política”, a historiadora Hebe Mattos, da Universidade Federal Fluminense, foi ao século 19 e nele encontrou “um vigoroso processo de desobediência civil por parte da classe senhorial” contra a extinção do tráfico de africanos.
Em geral, pensa-se que desobediência civil é coisa de pobre. A desobediência civil do andar de cima ajuda a entender o que está acontecendo com a Operação Lava Jato. (Em nenhum momento a professora fez esse paralelo e é possível que nem sequer concorde com ele.)
Até hoje só partiram do novo governo defesas cerimoniais da Lava Jato. Tramitam no Congresso lotes de iniciativas destinadas a desossá-la. Aqui e ali, ouve-se: “Onde é que isso vai parar?”. José Sarney, Renan Calheiros e Romero Jucá não podiam ter sido mais claros nos grampos de Sérgio Machado.
A professora mostra como a desobediência civil da elite do século 19 dobrou leis e tratados. Em 1823, quando a Inglaterra reconheceu a independência do Brasil, o governo comprometeu-se a extinguir o comércio de escravos trazidos da África.
Em tese, os negros trazidos para a terra seriam livres. Entre 1831 e 1851, chegaram ao Brasil cerca de 500 mil africanos contrabandeados. Todas as leis de proteção aos negros foram desossadas, e só em 1888 o Brasil tornou-se o último país americano livre a libertar seus escravos. Assim prevaleceu o atraso.
Na segunda metade do século 19, ninguém defendia a escravidão. Todo mundo aceitava o fim do cativeiro “desde que”. Assim como a escravidão, a corrupção empresarial e política da máquina pública é algo que precisa acabar, “desde que”.Desde que não se aceite a colaboração de pessoas presas, diz Renan Calheiros. Desde que uma pessoa possa recorrer em liberdade aos tribunais de Brasília, diz Romero Jucá. Desde que a Lava Jato tenha dia para acabar, diria o doutor Eliseu Padilha, chefe da Casa Civil de Michel Temer.
No século 19, a desobediência civil do andar de cima preservou a escravidão. No 21, ela tenta preservar o arcabouço que protegeu a corrupção e que agora está ameaçado.
Se a Lava-Jato não parar, parará o país
Desde quando a Lava Jato pegou o primeiro gato gordo das empreiteiras, a turma de desobediência civil tem argumentado que essa operação prejudica a economia do país, a tal “retomada do crescimento”.
Afinal, “com as finanças já arruinadas, com uma dívida pública que vai crescendo a passos agigantados, com as fontes de produção ameaçadas, é preciso que os representantes da nação sejam mais cautelosos.” Renan Calheiros? Eliseu Padilha?
Não, Domingos Andrade Figueira no dia 9 de maio de 1888, quando a Câmara discutia o projeto de abolição da escravatura. Dias depois a lei foi aprovada, com o voto contrário de um senador e nove deputados. Um deles era o doutor Andrade Figueira.
Quem achou essa advertência foi a historiadora Keila Grinberg. Ela publicou-a num texto que pode ser encontrado no blog “Conversa de Historiadoras”, onde também está o texto da professora Hebe Mattos.
Em maio de 2015, o doutor Emílio Odebrecht escreveu o seguinte:
“A corrupção é problema grave e deve ser tratado com respeito à lei e aos princípios do Estado democrático de Direito, mas é fundamental que a energia da nação, particularmente das lideranças, das autoridades e dos meios de comunicação, seja canalizada para o debate do que precisamos fazer para mudar o país. Quem aqui vive quer olhar com otimismo para o futuro -que não podemos esquecer-, sem ficar digerindo o passado e o presente.”
A Odebrecht está negociando os termos de sua colaboração com a Lava Jato.







