Do UOL — O skatista Kelvin Hoefler chorou quando entrou na casa do Comitê Olímpico Brasileiro em Tóquio com a medalha de prata da prova de street hoje de madrugada (no Brasil). Naquele momento, ele estava inaugurando o painel dos medalhistas brasileiros —e as lágrimas rolaram exatamente por isso: poder comemorar com os compatriotas. Antes, ele tinha chorado com as pessoas com quem divide as alegrias e tristezas e está junto na saúde e na doença, a fotógrafa Ana Paulo Negrão, sua esposa.
Ele falou com ela todos os dias desde que chegou à Tóquio. Ele falou com ela durante toda a competição —as câmeras mostravam a toda hora ele ao celular. E adivinha se ele falou com ela depois da medalha? “Liguei”.
Kelvin é o primeiro brasileiro a ganhar um quadro para colocar no painel da escola no bairro de Chuo, em Tóquio, onde os brasileiros montaram seu centro de operações. Escolheu colocar sua foto no canto. Justificou que é um cara reservado. Quem cuida das redes sociais dele é Ana. Mas na hora que estava na final olímpica, quando precisou de força externa, ele abriu o Instagram para se alimentar de mensagens positivas. Elas eram muitas. Até os brothers do Free Fire “que tomaram pau” na noite anterior estavam apoiando.
A história de Kelvin representa muito o Brasil, do menino que monta sua pista, que deixa a família e vai para o exterior em busca de um sonho e se apoia em seus companheiros no momento das glórias. Agora, Kelvin volta ao Brasil conhecido como primeiro medalhistas da história olímpica nacional do skate.

Como veio a prata
Na primeira prova de skate na história dos Jogos Olímpicos, Kelvin foi provavelmente o atleta que mais se destacou. Tudo bem que o ouro foi para o japonês Yuto Horigome, que competia em casa no Ariake Park, mas Horigome foi mal no início de sua prova e só chegou à liderança no finalzinho. Kelvin, não. Esteve entre os primeiros desde o início, a bandeira brasileira em primeiro lugar desde a primeira passagem de cada um dos oito finalistas.
Kelvin somou 36,15 pontos na final —que consistiu em duas voltas e cinco manobras, valendo as quatro maiores notas. Horigome venceu com 37,18. Jagger Eaton (EUA), com 35,35, completou o pódio —lenda do skate, o norte-americano Nyjah Huston terminou na discreta sétima colocação, com 26,10, depois de errar suas últimas quatro manobras.
O brasileiro terminou a primeira volta com a melhor nota (8,98) e recebeu aplausos do público em dois momentos. Na segunda vez em que entrou, voltou a ser exaltado e celebrou o fim da passagem com os braços erguidos: 8,84. Em seguida, nas passagens de melhor manobra, recebeu 8,99 na primeira, mas sofreu duas quedas em sequência. Irritado, deu um grito e jogou o skate contra o chão. Na quarta volta, colocou a mão no chão. A nota não era das melhores, mas o 7,58 o recolocava na disputa pelo pódio —nesse momento, Horigome e Eaton já tinham disparado.
Pressionado, o brasileiro conversou com Ana e com Pâmela e arriscou. Acertou a manobra no corrimão e tirou 9,34 —sua melhor nota do dia. Após encaixar a manobra final, Kelvin vibrou muito. Tirou o boné, bateu no peito e abriu o sorriso. Sabia que tinha feito o suficiente.

Braço direito, esquerdo e perna
A pressão de uma final olímpica não é pequena. Ainda mais quando você toma dois tombos seguidos e vê seus rivais passarem voando. Foi justamente entre as duas manobras que falharam e a que valeu a medalha de prata que apareceu sua mulher. Kelvin conheceu Ana Paula em Roma. Os ficaram amigos e mantiveram contato. Quando ele foi para os Estados Unidos e precisava de um lugar para ficar, alugou a cozinha da casa dela. “Foi lá que a gente ficou, e aí, foi”, ri Kelvin.
Era com ela que ele falava a cada volta, dando certo ou errado o que tinha planejado. As câmeras que transmitiram a primeira prova da história do skate olímpico focaram mais de uma vez no brasileiro que, à sombra de um guarda sol, discutia estratégias por um celular. Kelvin conta que Ana é seu braço direito, esquerdo e uma perna. “Ela é a minha técnica”.
Foi a opinião de Ana Paula, que não foi para o Japão porque a organização das Olimpíadas e o governo japonês limitaram as credenciais e vistos de entrada no país, que tornou possível a manobra que valeu os 9,34 e a medalha de prata.
“Ela falou: ‘Kelvin, você é o melhor em descer o corrimão. Você é quem mais sabe dar essa manobra”. Quando eu vou executar, fico com isso na cabeça. É um empurrãozinho a mais. Acredito que, sem ela, eu não teria acertado”.
Emocionado, o atleta disse que as mulheres presentes na vida dele são imprescindíveis para que atinja os melhores resultados. “As mina é foda, elas sabem o que estão fazendo”.

A melhor -e única- amiga
“As minas” que Kelvin cita são Ana Paula e Pâmela Rosa. Pâmela também apareceu bastante na transmissão para o Brasil. Campeã mundial de skate em 2019 e favorita à medalha de ouro no street feminino, ela é a melhor amiga do novo vice-campeão olímpico. Segundo ele, Ana e Pâmela formaram uma dupla vital para medalha: as instruções de ambas ajudaram no foco e na melhor tomada de decisões durante as horas de tensão no calor japonês.
Pâmela e Kelvin cresceram juntos e o skate, desde sempre, fez parte da vida dos dois. Em todos os eventos em que competiam, estavam juntos. “A mãe dela fazia excursão para os eventos. Ela me conhece muito bem, sempre me ajudou muito. E estou nervoso por ela, amanhã vou cair duro lá”.
“Ela [Pâmela] sabe da técnica do skate, é muito boa. Sem ela do meu lado, eu não teria conseguido essa medalha. Essas duas pessoas me ajudaram muito. Elas assistem ao meu treino e sugerem: ‘Kelvin, você precisa de uma vela naquele lugar; precisa beber água. Elas prestam atenção nos mínimos detalhes”, afirmou. “Depois das minhas duas quedas, foi isso: eu falei que estava muito vento e elas —as duas— falaram: ‘Troca uma manobra por outra, passa a vela em outro lugar'”. A vela a que Kelvin se refere é a cera que os atletas passam no corrimão para ajudar nas manobras.
Eu falo: ‘Pra que regra, pô, sou skatista’. Mas elas me botam no cabresto.”

Pista improvisada em casa
Kelvin tem 27 anos e, além da prata de hoje, tem seis títulos mundiais de street pela WCS (World Cup Skateboarding) e duas medalhas de ouro, uma prata e dois bronzes nos X-Games. Essa história começou aos oito anos quando improvisou, dentro da própria casa, as primeiras pistas de skate. Era a saída para Kelvin praticar o esporte já que a família morava em uma rua de terra, que impedia o deslizamento das rodinhas.
O primeiro skate do vice-campeão olímpico foi presente do pai, Eneas de Souza, policial militar, que o ensinou que se queria ser atleta, precisava ter disciplina. Em entrevista ao jornal O Globo, o atleta conta que costumava deixar a mãe, Roberta, furiosa ao atrapalhá-la na hora da novela. Ele andava de skate para lá e para cá na sala de casa, e passava em frente à televisão com frequência. “Ela ficava p… da vida”.
Foi aos nove anos, um ano depois de ganhar o primeiro skate, que o skatista conquistou seu primeiro campeonato. Aos 13, a decisão estava tomada: ele seguiria carreira no esporte.

Ovelha negra da família do skate
E, se a família de Kelvin foi vital para que ele virasse skatista, a relação com outra família, a da seleção brasileira, é outra história. Pâmela Rosa, que é parte da seleção, deu orientações ao amigo, mas outros skatistas da seleção sequer fizeram referências ao resultado nas redes sociais.
Felipe Gustavo foi eliminado nas eliminatórias e voltou para a Vila Olímpica antes da final. Logo após a prova, ele postou uma mensagem de “parabéns”, mas para o japonês Yuto Horigome. Pelo Instagram, onde tem 760 mil seguidores, não citou a conquista de Kelvin —ele nem mesmo segue o companheiro de seleção.
O atleta afirma não ter qualquer problema com os colegas. Segundo ele, sua personalidade mais fechada e introvertida afasta os outros. Ele prefere ficar na dele e até coloca fones de ouvido sem música para que as pessoas não o procurem. “Prefiro assim para me concentrar”. Durante as entrevistas posteriores à premiação, ele conta não estar habituado a tanta gente por perto. “Não aguento mais, me deixa ir embora”, brincava.
Pelas redes sociais, a skatista brasileira Letícia Bufoni expôs o distanciamento: “O Kelvin nunca está com a gente nos rolês, nunca faz parte das nossas atividades. Por opção dele. Ninguém não gosta dele, pelo contrário, todo mundo está feliz. Respeito muito a história dele, mas ele não gosta de estar com a gente, não se envolve nas nossas atividades.” E contou um bastidor: “A CBSk não pode nem marcar ele nos stories porque ele bloqueou a CBSk. O skate é uma família independente se americano, francês, a gente está torcendo para todo mundo”.
Questionado sobre a mensagem da colega, Kelvin afirma que o afastamento entre os dois foi circunstancial. “Cresci junto com a Letícia também, a tia dela morava na rua da minha casa. A gente era bastante próximo até ela ir para os Estados Unidos e eu ficar no Brasil. A gente perdeu contato e, quando ela voltou, já não tinha mais aquela amizade. Não teve briga, foi um distanciamento, mesmo. Sou um cara pacato, quietinho no meu canto.”

Apoio virtual do público
Introspectivo também nas redes sociais, quem cuida das publicações e divulgações é sua esposa, Ana Paula. Ainda assim, foi por meio de uma rede social, o Instagram, que o brasileiro encontrou o apoio que faltou com a ausência do público na competição.
“Como não tinha público, pensei: ‘Preciso ir atrás de mensagens positivas’. Abri o Instagram durante a competição, mesmo, e já me deparei com várias delas. Eram muitas. Depois disso, ficou claro: agora é hora de representar meu Brasil.”
Apesar de preferir se manter distante da internet, Kelvin gosta de jogos on-line —Free Fire, especificamente. As mensagens de carinho também chegaram ao atleta por meio do game: “Ontem à noite, eu joguei e comecei a receber um monte de mensagens. Até dos caras contra quem eu disputei o joguinho. Coisas como ‘cara, joguei contigo ontem, você matou meu personagem. A gente tá torcendo por você’. Falei: caraca, que daora. Tirei a vida do cara no gamezinho e ele tá torcendo por mim”, contou. “O jogo fez essa parte e é muito gratificante. Me fortaleceu ainda mais.”
Foram os jogos online que uniram os amigos de Kelvin durante a pandemia. Ele criou um grupo só de skatistas para que jogassem juntos e evitasse afastamento pela distância física. “A gente treina bastante, o dia inteiro. E, com a pandemia, era preciso ter uma válvula de escape. Foi legal porque a gente trocou ideia e se divertiu mesmo sem poder se ver pessoalmente.”







