Por Arnaldo Bloch de O Globo
Sexta fui cortar o cabelo. O barbeiro perguntou o que estou achando do presidente. Respondi que, atualmente, sinto vergonha profunda de ser brasileiro. Ele disse que também sente, mas já sentiu mais. Fiz um exame interno e confirmei: não, nunca antes. Nem durante o regime militar. Muito jovem e sem família e amigos na resistência, eu pouco ou nada sabia.
O barbeiro pediu que eu esclarecesse. Disse a ele que, da redemocratização para cá (Collor pode ser considerado um interlúdio) tivemos dois governos longevos com qualidades e defeitos, alguns muito graves, permeados por alto grau de corrupção. E um governo inepto e equivocado, interrompido em seu segundo mandato por um impeachment político. Nenhum deles, porém, esteve empenhado, explicitamente, em “desconstruir, não construir” (palavras de Jair).
Nenhum ex-presidente (nem Collor), chamou árvore de “essa porra”. Nem elogiou torturadores em sessão plenária da câmara. Tampouco tinha como livro de cabeceira o de um torturador. Nem Itamar, nem FH, nem Lula, nem Dilma, guardavam relações familiares consistentes com as milícias ou esnobavam vítimas das mesmas.
Não gostavam de pescar em santuários marinhos infringindo a lei e insultando os fiscais, livrando-se, aliás, da multa. Não eram negacionistas do aquecimento global ou dos anos de chumbo nem festejavam oficialmente o aniversário do golpe de 1964.
Não trouxeram, de suas fileiras, para o imaginário público uma ideia perversa (sabe-se lá nascida dos grotões de que repulsiva fantasia) como a “mamadeira de piroca”, um dos símbolos do sistema de mentiras bolsonarista.
Não fizeram prosperar, sem que qualquer reação pudesse ocorrer, um modelo sinuoso e teocrático de intervenção na política cultural como o que vemos agora (as tentativas dirigistas de Lula foram suspensas diante do clamor público, como sói numa democracia).
Nenhum deles fez papel de bobo no exterior ao esnobar as cozinhas locais ou disseminar a ideia de que os japoneses, mestres da fritura, detestam peixe frito, e outras papagaiadas e clichês de enésima categoria.
Seus antecessores não estimularam o armamentismo, a violência rural, nem posaram para fotos com crianças ensinando-lhes a empunhar pistolas. Não tentaram diminuir a segurança no trânsito, liberando os pequenos de usar cinto.
Não propagaram a ideia caduca de que os povos indígenas são atrasados. Ou que respeitar o modo de vida das etnias mais isoladas (como caçar com arco e flecha, pescar com timbó, viver nu, realizar seus ritos e costumes) significa “fazer dos índios animais de zoológico”. A noção indígena de proteção da floresta, aliás, está em consonância com o que há de mais moderno em ambientalismo sustentável. Basta saber integrá-la ao pensamento econômico.
Sob o comando de nenhum deles o país viu suas instituições serem ameaçadas como agora. Desde a abertura, ninguém havia instalado sensação tão plausível de a democracia estar por um fio, de o país ser uma piada dentro da História, de a ignorância estar prestes a triunfar, liberta de recalques, na forma do “burrismo”, nossa nova bandeira.
O barbeiro terminou seu trabalho sem cortar minha orelha, o que considerei uma vitória da civilidade no atual nível de debate. Despedimo-nos gentilmente e lhe dei uma boa gorjeta.







