Por Josias de Souza
A manobra regimental que atenuou a punição de Dilma Rousseff foi negociada em segredo por parlamentares leais à presidente cassada com o madarim do Senado Renan Calheiros. Embora chame o impeachment de “golpe”, Dilma concordou com o acerto que lhe assegurou o direito de assumir cargo público mesmo depois de deposta. Lula avalizou a articulação. Informado com antecedência, o presidente do Supremo Tribunal Federal, Ricardo Lewandowski, estudou leis e regimentos. Equipado, refutou todas as ponderações em contrário. Escorando-se em anotações minuciosas, deferiu o fatiamento da votação, em desacordo com o que prevê a Constituição.
A matéria está regulada no parágrafo único do artigo 52. O texto constitucional é claro como água de bica. Prevê que o impedimento deve ser votado junto com a proibição de exercer cargos públicos. Anota que, nos casos de crime de responsabilidade, os senadores votam “a perda do cargo, com inabilitação, por oito anos, para o exercício de função pública, sem prejuízo das demais sanções judiciais cabíveis.” Coube ao PT apresentar o requerimento para votar separadamente a segunda parte da condenação. Inicialmente, a senadora Kátia Abreu (PMDB-TO), ex-ministra e amiga de Dilma, tomaria a inciativa. Mas verificou-se que o pedido teria de ser feito em nome de um partido.
Para deferir o pedido, Lewandowski brandiu artigos extraídos do regimento interno do Senado e da Lei 1.079. Fez isso mesmo sabendo que a Constituição se sobrepõe à legislação infraconstitucional. O inusitado roçou a fronteira do paroxismo nos instantes e que o presidente do Supremo equiparou o julgamento do impeachment à análise de uma proposição ordinária, passível de ser emendada. Nessa versão, aplica-se o artigo 312 do regimento do Senado, que faculta aos partidos requerer o destaque de trechos de propostas submetidas à deliberação dos senadores para que sejam votados separadamente.
Graças a essa excentricidade jurídica, o Senado subverteu um mandamento constitucional valendo-se de um reles regimento interno. Deu-se, então, o fenômeno do voto com dupla personalidade. Dilma foi deposta por 61 votos a 20. Na segunda votação, apenas 42 senadores votaram a favor da inabilitação da condenada para o exercício de cargos públicos —12 votos abaixo do mínimo necessário. Ironicamente, deve-se sobretudo ao PMDB, partido do “golpista” Michel Temer, o tratamento misericordioso dispensado a Dilma.
Dez senadores do PMDB que votaram a favor do impedimento viraram a casaca na segunda rodada. Oito votaram contra a inabilitação: Edison Lobão (MA), Eduardo Braga (AM), Hélio José (DF), Jader Barbalho (PA), João Alberto Souza (MA), Raimundo Lira (PB), Rose de Freitas (ES) e Renan Calheiros (AL). Dois se abstiveram de votar: o líder da bancada Eunício Oliveira (CE) e Valdir Raupp (RO). Na prática, a abstenção vale tanto quando um voto a favor de Dilma.
Ampliar







