Gabriel de Paiva e Renan Rodrigues, de O Globo
Depois das latas de cannabis dos anos 1980 e dos arrastões da década de 1990, o Rio já pode dizer que tem, este ano, o “verão do cão”. E isso nada tem a ver com as altas temperaturas. Logo após os cachorros ganharem passaporte quase livre para frequentar a orla carioca— graças à aprovação, em setembro do ano passado, de uma nova legislação —, banhistas passaram a travar uma batalha canina. Se antes o debate era sobre irregularidades recorrentes, como a bola que escapa da altinha e acerta a cabeça da criança ou a venda proibida de espetinhos de camarão, as opiniões agora se dividem sobre a frequência dos animais de estimação nas areias, autorizada por lei. Os animais ganharam lugar de fala até na Câmara Municipal.
Nas areias, é o assunto do momento. Direto, o aposentado Mário Silva, de 64 anos, vai logo ao ponto para defender um espaço restrito para os animais ao longo da orla do Rio.








— Não gosto de cachorro. É preciso regrar, criar espaço definido para eles — alega o aposentado, acrescentando que o fato de existir uma lei, exigindo que o bicho esteja vacinado e limpo, não impede abusos. — É o mesmo caso da regra da altinha. Quem fiscaliza? Não me importo de jogarem, mas se eu levar uma bolada vou ficar chateado. Falta bom senso às pessoas.
O barraqueiro conhecido como Nativo, que trabalha na Praia do Leme, perdoa os cães e culpa os donos:
— Tem madame que vê o cachorro fazer necessidade e não está nem aí. Vai embora e deixa as fezes. A areia está cheia de moscas.
Zia, a garota do Arpoador
Na quinta-feira da semana passada, a empresária Ana Clark, de 48 anos, foi para o Arpoador com sua cadela Zia, de 3. Ela admitiu que já a levava quando era proibido, mas as duas ficavam na pedra. Ana, no entanto, acha que, para uma convivência pacífica, é preciso regras.
— A pessoa que traz o cachorro precisa ser consciente. O cão não pode jogar areia nas pessoas e, se fizer cocô, o dono tem que retirá-lo. Vacinação, então, nem se fala, tem que estar em dia — afirma Ana, acrescentando que sua pet já é “local”. — A Zia, que achei em Visconde de Mauá, passou de garota da Serra à garota do Arpoador.
Autor do projeto que liberou a cachorrada, o vereador Luiz Carlos Ramos (Podemos) não quer ser o vilão e prepara sugestões capazes de pacificar os ânimos.
Além da obrigatoriedade de o animal ser vacinado e não ter qualquer doença, Ramos explicou que um grupo de trabalho da Câmara sugere que seja criada uma multa de R$ 185 para o dono de cão que, por exemplo, não recolher os dejetos de seus animais. O problema é que essa, como outras sugestões, depende da regulamentação da lei, o que ainda não aconteceu.
—Pedi audiência com o prefeito Marcelo Crivella para que o município ordene e estabeleça faixas de areia para o cachorro ficar. O decreto de regulamentação está pronto para ser assinado. O ideal era que isso tivesse acontecido antes do verão — diz o vereador, para, em seguida, tentar dividir a polêmica com outras práticas pouco inspecionadas. — Agora, estamos no olho do furacão, com altinha, frescobol e venda de produtos à margem da fiscalização sanitária.
De acordo com a Guarda Municipal, a lei que permitiu a presença de cães nas praias da cidade “passa por adequação dentro das normas de conservação e meio ambiente”. Os agentes, informa o órgão por nota, orientam, atualmente, “os donos de animais sobre a nova legislação, que exige o uso de guia e cartão de vacinação”. Ao longo de 2019, equipes registraram 4.609 orientações para a retirada de cães das areais das praias das zonas Sul e Oeste.
Uma das propostas da Câmara é criar espaços restritos para os animais. Em Ipanema, o balneário dos cães seria limitado ao trecho entre os números 610 e 744 da Avenida Vieira Souto. Em Copacabana, eles só poderiam abanar o rabinho entre o Posto 3 e o número 2.672 da Avenida Atlântica, e dos postos 5 ao 6. Os bichos só ficariam livres, leves e soltos na Joatinga e na Urca.
A saúde dos frequentadores preocupa o infectologista Edimilson Migowski, diretor de relações externas da UFRJ. Ele destaca que é muito importante contar com o bom senso dos donos de animais:
— Espera-se que tenham um mínimo de consciência. As fezes dos bichos, se encobertas pela areia, podem provocar parasitoses como a larva migrans, responsáveis por uma infecção bacteriana que incomoda e coça demais.
Turista: ‘vítima’ da altinha
A bagunça que impera nas praias do Rio já criou até uma nova expressão para o glossário de desventuras na cidade: a “vítima da desordem urbana”. Moradora de São José do Rio Preto, em São Paulo, a professora Rose Helena Milan, de 49 anos, visitava o Leme, na última terça-feira, quando levou uma cabeçada de um banhista que jogava altinha à beira-mar por volta das 13h, o que é proibido. Ela foi parar na UPA de Copacabana, onde levou quatro pontos no supercílio.
— Estragou a minha viagem. Não volto mais em janeiro porque é muita confusão — lamenta a turista, que está pela segunda vez no Rio.
A Guarda Municipal garante que tem fiscalizado a prática irregular de esportes na orla: em 2019, os agentes fizeram 505 ações de coerção aos jogos flagrados fora do local e horário permitidos.
O que pode e o que não pode
Cachorro
Os cachorros estão permitidos em todas as praias do município. Para frequentá-las, os cães precisam estar vacinados e não podem ser portadores de zoonoses. O responsável pelo animal deve portar certificado de vacinação (ou cópia, física ou digital), que contenha etiqueta semestral de vermifugação, para apresentá-lo sempre que for solicitado. A lei prevê a obrigatoriedade do uso de coleiras nos animais inclusive nos calçadões, além de determinar que o dono é o responsável pelo recolhimento das fezes. Segundo a Guarda Municipal, os agentes têm fiscalizado: foram 4.609 orientações a donos de animais em 2019.
Esportes
A regra para a prática de esportes é uma das mais polêmicas — e desrespeitadas. Segundo a prefeitura, não são permitidas atividades com bolas, raquetes ou discos na beira d’água entre 8h e 17h. A proibição vale para altinha e frescobol, os esportes mais populares entre cariocas. Não há proibição a jogos na areia próxima ao calçadão, informou a Guarda Municipal.
Venda de produtos
A venda de milho, queijo coalho, salgados e sanduíches têm comercialização vedada na areia caso sejam feitos no local, segundo a Coordenadoria de Controle Urbano. Os frutos do mar, incluindo os espetinhos de camarão, são vetados, assim como as quentinhas que invadiram as praias da Zona Sul e o cigarro. São autorizados: bebidas, biscoitos, açaí, sorvetes, batata frita industrializada e frutas embaladas. Segundo a Vigilância Sanitária, em relação à comercialização de alimentos, foram feitas, desde 22 de novembro, 701 inspeções, que resultaram em 244 infrações.