Do Estadão – As provas usadas pela Polícia Civil do Rio de Janeiro para embasar a operação deflagrada na terça-feira, 28, nos complexos da Penha e do Alemão, na zona norte da capital fluminense, demonstram a violência e o poder draconiano usados pelas lideranças do Comando Vermelho (CV) para subjugar os cerca de 100 mil moradores que vivem na região.
Trocas de mensagens e imagens interceptadas pelos investigadores evidenciam uma rotina de abusos e desmandos, em um ambiente de acesso restrito do Estado. Lá, vigora uma justiça paralela, com execuções e tortura de desafetos, julgados e sentenciados pelos próprios criminosos, e até tortura de moradores.
“É uma cadeia de comando rigidamente estabelecida e cumprida, com emissão de ordens, além de punições severas aos descumpridores das diretrizes”, destaca o documento obtido pelo Estadão. A defesa dos citados não foi localizada.
As conclusões e os materiais estão em uma das denúncias do Ministério Público do Rio que fazem parte do conjunto probatório usado pelos investigadores para, nos últimos meses, obter na Justiça mandados de prisão contra envolvidos em crimes como tráfico de drogas, homicídios, desaparecimento de dezenas de pessoas e roubos de toda ordem. Casos vindos de outros Estados, mirando bandidos refugiados nas áreas, também entraram na empreitada.
Na terça-feira, as forças policiais fluminenses juntaram todas essas ordens judiciais e, após planejamento de 75 dias, invadiram as favelas para cumprir 180 mandados de prisão e busca e apreensão.
A operação terminou com 121 mortos, incluindo quatro policiais, o que pôs em xeque a estratégia adotada pela cúpula da Segurança. A ação policial motivou pânico entre moradores, bloqueio de avenidas e suspensão de serviços em vários pontos da cidade.

O governador Cláudio Castro (PL) disse que a operação foi um “sucesso”, mas a Defensoria Pública Estadual fala em indícios de ilegalidades.
O recorte da investigação obtido pelo Estadão tem 74 páginas e teve início na Delegacia de Repressão a Entorpecentes (DRE) e apontou Edgard Alves de Andrade, o Doca ou Urso, assim como Pedro Paulo Guedes, o Pedro Bala, como integrantes do primeiro escalão do grupo na localidade e em outras favelas cariocas.
Abaixo deles, estão, segundo as autoridades, Washington Cesar Braga da Silva, o Grandão ou Síndico da Penha, e Carlos Costa Neves, o Gardenal, que seria também um dos comandantes da expansão da facção sobre áreas de milícia na zona oeste, em guerra que se arrasta há cerca de três anos e já deixou dezenas de mortos.
Nuvens de celulares com mais de 5 GB de dados e aparelhos aprendidos anteriormente tiveram o conteúdo extraído, com autorização judicial, e serviram como base para a apuração.
Prints de conversas exibidas na denúncia indicam a liderança de Doca e Pedro Bala. Em uma mensagem, o recado é claro: “ninguém dá tiro sem ordem do Doca ou do Bala.” Para os promotores, ambos dão ordens diretas “sobre a dinâmica do tráfico de drogas no Complexo da Penha e comunidades adjacentes, inclusive sobre venda e guarda de drogas, armas de fogo de grosso calibre e contabilidade da facção criminosa.”
Fotos obtidas pelos investigadores mostram que homens armados com fuzis, e até cachorros, fazem a segurança desses líderes, em casas no alto das favelas.
Em uma das conversas, Neves ou Gardenal, que tem o nome registrado na conversa como “Deus”, demonstra irritação com o trabalho nas bocas de fumo, reclamando da perda de carregamentos em 2023, segundo o MP. “O gerente nós vai (sic!) mandar matar agora”, diz ele, demonstrando a forma violenta como é controlado o tráfico na comunidade, além de seu poder de decisão sobre a vida dos comparsas.
Neste caso, o MP também denunciou Juan Breno Malta Ramos, o BMW, tido como gerente do tráfico do CV na Gardênia Azul, localidade invadida pela facção e tirada do comando da milícia.
Segundo os promotores, ele faz parte do chamado grupo “Sombra”, que reúne matadores a serviço do grupo, “atuando na expansão territorial da facção criminosa pela região da grande Jacarepaguá”, na zona oeste.
A denúncia do MP diz que Ramos ou BMW, por exercer a função de ampliar os domínios do bando de traficantes, controla grandes quantias de dinheiro. Com esses recursos, ele compraria armas de grosso calibre e faz investimentos em segurança, possuindo “diversas câmeras de monitoramento no Complexo da Penha e na comunidade Gardênia, algumas com sensor de movimentação.”
A polícia do Rio credita a ele ainda a prática de “punições e tortura contra moradores”, organizando os chamados tribunais do tráfico, “com autonomia para determinar a execução de rivais de menor expressão.”
Em fotos exibidas no documento, uma mulher, descrita como “briguenta que gosta de arrumar confusão no baile”, está dentro de um compartimento cheio de gelo, com expressão de sofrimento. Ao lado, outra imagem mostra um homem no chão tomando pauladas.
Traficante debocha da vítima agonizante, diz denúncia
Os investigadores afirmam ter tido acesso a um vídeo em que um homem é “arrastado por um carro, amordaçado e algemado, por alguns minutos, supostamente para confessar participação em uma delação a um grupo rival.”

Segundo os promotores, “em meio a gritos implorando por perdão”, o rapaz alvo das agressões cita o nome de Ramos ou BMW várias vezes, enquanto o traficante “faz piada do sofrimento alheio, debochando da vítima agonizante.” Uma imagem anexada à denúncia mostra que a tortura estava sendo transmitida em vídeo. O rosto de Neves ou Gardenal, vulgo Deus, aparece como sendo o telespectador do crime.
Os investigadores apontam que os criminosos, como estratégia, costumam se agrupar “nas cercanias de estabelecimentos de ensino”, inclusive criando pontos de vigilância armada ao redor das escolas.
Apurações da Polícia Civil já demonstraram, em áreas do CV no Complexo da Maré, que essa escolha é feita para que, em dias de operação, o clamor social pela vida dos estudantes, que costumam publicar vídeos imediatos em redes sociais em pânico, sirva para interromper incursões.
Neves ou Gardenal também figura como participante de outro grupo de troca de mensagens, onde recebe, de ladrões de veículos variados, dezenas de fotos de carros caros roubados no Rio de Janeiro, sempre sendo oferecidos abaixo do preço.
Os promotores, citando a investigação da Polícia Civil, a que o Estadão ainda não teve acesso, citam que o traficante faria a lavagem de dinheiro do crime usando empresas de fachada.








