Vinicius Sassine, O Globo – Os últimos 14 dias de vida de Joaquim Alves de Medeiros, de 88 anos, foram da mais profunda solidão: as duas semanas derradeiras se passaram a 200 quilômetros de casa, numa cidade que não era a sua, sem um único familiar ou amigo por perto. Joaquim morreu sozinho, entubado em um leito de um hospital de campanha. E foi enterrado sozinho, sem velório ou despedida. Infectado pelo novo coronavírus, seu corpo fez no último domingo o caminho de volta de Goiânia a Valparaíso de Goiáse foi sepultado a jato numa cova já aberta do cemitério da cidade, que fica no entorno de Brasília. O caixão estava lacrado.
– Não tinha nem o vidro para ver o rosto dele. Pelo menos vi o caixão – diz Edvaldo Medeiros, 62, um de seus filhos.
O que ocorreu com Joaquim já havia se passado outras duas vezes no entorno da capital federal, com dois idosos de Luziânia (GO) que também morreram por Covid-19, e pode se repetir nas próximas semanas: as cidades do entorno, onde vivem mais de 1 milhão de pessoas, não têm leitos de UTI, pouco se comunicam com o sistema de saúde de Brasília – que está a 35 quilômetros de Valparaíso e Luziânia, por exemplo – e precisam mandar pacientes graves para um hospital de campanha montado em Goiânia, num percurso de 200 quilômetros, durante a pandemia do novo coronavírus.
Esta realidade vai perdurar enquanto não ficar pronto o hospital de campanha em fase de montagem em Águas Lindas de Goiás, também no entorno de Brasília. É o primeiro hospital do tipo erguido pelo governo federal, com previsão de 200 leitos. No último sábado, foi visitado pelo presidente Jair Bolsonaro. As obras estão previstas para terminar em duas semanas. E não se sabe quando os leitos estarão equipados e prontos para receber pacientes.
Enquanto isso, em Valparaíso de Goiás, parece não existir uma pandemia em curso: o comércio segue aberto, inclusive distribuidoras de bebidas, e é intenso o fluxo de pessoas, com direito a peladas nas quadras e campinhos de futebol. Luziânia já está mais adaptada ao isolamento social, com comércio fechado e pouco fluxo de gente nas ruas.
Além das três mortes já confirmadas, a Secretaria de Saúde de Goiás registra seis casos de Covid-19 em Valparaíso, oito em Luziânia, dois em Águas Lindas, dois em Cidade Ocidental (GO) e três em Formosa (GO), todas elas cidades do entorno, conforme os dados divulgados na quinta-feira. Na capital goiana, já são 182 os casos confirmados, com oito mortes.
Joaquim estava sentado no sofá de casa, em Valparaíso de Goiás, quando teve uma súbita falta de ar. Ele chegou a perder os sentidos, e a família acionou o Corpo de Bombeiros e o Samu. Sem carros disponíveis no momento, na noite do último dia 28, Joaquim foi levado pelos familiares ao Centro de Atendimento Integrado à Saúde (Cais) da cidade. Ele precisou ser entubado e ser conectado a um respirador, já no Cais. Na manhã seguinte, foi mandado para o hospital de campanha de Goiânia.
– Vieram médicos com aquelas roupas parecidas de astronautas. Ele seguiu sozinho para Goiânia, ninguém podia entrar lá, ninguém podia visitar — afirma Hugo Medeiros, 23.

O resultado de um teste para coronavírus, analisado num laboratório público em Goiânia, demora de 10 a 15 dias, segundo a Secretaria Municipal de Saúde de Valparaíso de Goiás. O de Joaquim saiu três dias após o encaminhamento à capital goiana. De longe, a família acompanhava o estado de saúde dele por meio de boletins médicos enviados diariamente. O quadro mais comum era grave, porém estável.
Joaquim passou todos os dias numa UTI, entubado e com algum nível de sedação. Chegou a fazer algumas sessões de hemodiálise. Ficou em total isolamento, sem nenhum parente por perto. Apenas uma neta foi à capital goiana para levar sua medicação para a doença de Parkinson, a pedido dos médicos. Não chegou nem perto do leito.
Uma ligação de Goiânia às 23h50 do último sábado avisou os familiares que eles precisariam se deslocar à cidade, munidos de documentos pessoais e comprovante de residência de Joaquim. Não foram avisados da morte naquele momento, apesar da obviedade contida na ligação. A notícia explícita foi dada presencialmente, na madrugada de domingo.
– Eu não acredito que meu pai teve Covid-19 – diz Edvaldo, que morava com o pai.
Na mesma casa viviam Joaquim; Edvaldo; Elza de Medeiros, 61, outra filha de Joaquim; e os netos Hugo e Bruna de Medeiros, 33. A família diz ter pedido uma contraprova para o teste positivo para Covid-19, não realizada, segundo eles. O atestado de óbito registra Covid-19, insuficiência respiratória aguda grave e insuficiência renal aguda como causas da morte.
As quatro pessoas que moravam com Joaquim foram colocadas numa lista de “prováveis” infectadas pelo novo coronavírus, sem terem sido testadas. Três das quatra apresentaram os sintomas da doença, como febre alta, tosse e perda de olfato. Duas tinham também dengue, uma realidade comum a cada esquina das cidades goianas. A família já cumpriu a quarentena de 14 dias. E segue isolada em casa, diante da incerteza sobre terem sido ou não infectados pelo novo coronavírus.
– É uma angústia não saber se os números dessa doença são exatos. O que se sabe é pouco? É muito? É real? – questiona Hugo.
Duas famílias de Luziânia viveram situações muito semelhantes e uma terceira pode ver o mesmo drama se repetir. Um mulher de 66 anos foi mandada para Goiânia depois de passar mal com sintomas de Covid-19.
Hipertensa, diabética, com problemas pulmonares e doença cardiovascular, ela foi a primeira vítima do novo coronavírus a morrer no Centro-Oeste. Já um homem de 77 anos, sem problemas prévios de saúde, hígido, deixou Luziânia com destino ao hospital de campanha de Goiânia, e morreu na última quinta-feira, 9, com confirmação de Covid-19 no sábado seguinte. Um terceiro paciente de Luziânia está entubado no hospital da capital goiana, em estado grave, e aguarda o resultado do teste para o novo coronavírus.
Os secretários de Saúde de Valparaíso de Goiás e Luziânia estão contando com os leitos do hospital de campanha em obras em Águas Lindas de Goiás.
– Provavelmente nossos casos graves vão para lá – diz Alyane Ribeiro, secretária de Valparaíso.
– Se este hospital de Águas Lindas ficar pronto, vai ajudar. Hoje, só podemos internar em Goiânia – afirma José Walter Marques, secretário de Luziânia.