Por Lauro Jardim, de O Globo – Uma correspondência misteriosa assinada por um remetente fictício associado à mitologia grega. Dentro do envelope, um desenho de um pênis com asas. Seria uma cena prosaica, tivesse ocorrido entre colegas de turma na escola. Mas o episódio se passou dentro do Itamaraty, entre diplomatas. E virou caso de polícia.
Era 21 de junho de 2024, quando o primeiro-secretário Cristiano Ebner, chefe da Divisão de Saúde e Segurança do Servidor (DSS), se deparou com uma carta sobre sua mesa. Endereçada a ele, foi entregue pelos Correios no Ministério das Relações Exteriores, em Brasília. E enviada por uma desconhecida “Fundação Kresus”.
Ao abrir o envelope, a surpresa: uma ilustração colorida de um pênis com asas. Não havia mais nada além disso. Cristiano entendeu como ofensa e ameaça, conforme relatou à Corregedoria do MRE.
Em sua função, o diplomata lida com exames admissionais e perícias médicas, que podem implicar no retorno de um servidor ao exterior ou adiar sua remoção do Brasil por questões de saúde, por exemplo. Situações que podem desagradar colegas de Itamaraty, o que fez o chefe da DSS temer por sua segurança.
O caso foi reportado à embaixadora Daniella Ortega, sua chefe imediata, que o aconselhou a acionar a polícia. O fato, então, foi comunicado à PF, que iniciou uma apuração. Os investigadores identificaram em agosto quem teria postado a carta, por meio das imagens do circuito de segurança da agência dos Correios.
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Ao ser avisado, Cristiano não reconheceu a pessoa. A PF prosseguiu com as diligências. Também mencionou que o remetente “Kresus” poderia ter relação com Creso, último rei da Dinastia Mermnada, cuja história é revestida de tragédias. Quanto ao desenho, descobriu se tratar de um “passaralho”, neologismo usado para demissões em massa.
Dois meses após abrir a carta, Cristiano recebeu uma mensagem por WhatsApp. Vinha de Pablo Cardoso, ministro-conselheiro do Brasil junto à Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP). O diplomata, radicado em Lisboa, queria conversar sobre um “assunto delicado”.
Segundo Cristiano narrou à corregedoria do Itamaraty, após seu aval, Pablo ligou. Revelou ter sido ele o autor da correspondência. Acrescentou estar surpreso com o envolvimento da PF. E alegou que era uma pegadinha, que admitiu ter sido infantil.
Na chamada, Pablo afirmou estar preocupado com um amigo a quem pedira para postar a correspondência. A PF o havia intimado a depor. O diplomata então perguntou se Cristiano não poderia desistir da representação, ainda segundo o texto enviado à corregedoria. Mas o chefe do DSS resolveu levar o caso adiante.
Pablo explicou que avisou a colegas do Itamaraty que faria uma brincadeira com o autor da próxima comunicação que viesse de Brasília e chegasse em uma sexta-feira. E assim o fez após receber um expediente com as iniciais de Cristiano, em maio.
Ao reportar o caso à PF, Cristiano disse que se sentia ameaçado, dado o “modus operandi” meticuloso e a ofensa “detalhadamente” planejada. Também demonstrou interesse na punição do responsável, especialmente se fosse servidor público, pela conduta que classificou como “indecorosa, antiética e preconceituosa”.
Em seu relato à Corregedoria, Cristiano afirmou ter concluído que o caso configuraria assédio moral, quebra de decoro e preconceito, por envolver um colega de profissão hierarquicamente superior, num ato “sem justificativa racional”, que lhe causou “constrangimento, angústia, temor e ansiedade”.
Em outubro passado, Pablo assinou um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), em que se comprometeu a manter um comportamento compatível com seu cargo num prazo de 24 meses. A Corregedoria decidiu não abrir um processo administrativo disciplinar. Na mesma época, o inquérito da PF também foi arquivado por “falta de elementos para a consumação do delito” de ameaça.
Neste ano, o Itamaraty decidiu designar o ministro para chefiar a embaixada em Guiné-Bissau. O agrément a ele foi concedido este mês. Será a primeira vez que Pablo comandará um posto no exterior.
Procurado, Pablo afirma que “não há qualquer procedimento em desfavor do servidor ‘tramitando na Corregedoria do MRE’. Diz ainda que o “procedimento foi arquivado em outubro de 2024, após ter assinado um termo de ajustamento de conduta, que vem sendo rigorosamente cumprido desde então”. Acrescenta que “o procedimento não concluiu pela existência de assédio moral ou quebra de decoro e não acarretou qualquer penalidade disciplinar”. E ressalta que “a investigação policial também foi arquivada no mesmo mês, ‘por falta de elementos necessários para a consumação do delito'”.
Já Cristiano, também procurado, não retornou até esta publicação. O Itamaraty disse que não comentaria o caso.