Por Janaína Figueiredo, O Globo — A primeira medida anunciada pelo presidente da Argentina, Alberto Fernández, após o atentado sofrido pela vice-presidente Cristina Kirchner, na noite de quinta-feira, foi um feriado nacional, nesta sexta, “para que os argentinos possam se expressar em paz e se solidarizar com Cristina”. A tentativa de assassinato da ex-presidente (2007-2015), o mais grave fato de violência política vivido na Argentina desde a redemocratização do país, se transformou, automaticamente, no ponto forte da narrativa adotada pela Casa Rosada para enfrentar os enormes desafios — políticos, econômicos, sociais e financeiros — que tem pela frente, e com a eleição presidencial de 2024 já no radar.
Fernández afirmou que “Cristina continua viva porque, por alguma razão ainda não confirmada tecnicamente, a arma com cinco balas não disparou apesar de ter sido engatilhada”. Fontes do governo argentino repetiram, várias vezes, que “Cristina está viva por um milagre”. O revólver, de fato, estava carregado. Uma perícia policial determinará o que falhou, e por que falhou. Mas, neste momento, o importante para o governo argentino é frisar o milagre, e fazer dele sua tábua de salvação política.
Desde que o Ministério Público pediu 12 anos de prisão para a vice-presidente, acusada de ter chefiado uma associação ilícita que favoreceu empresários amigos em licitações de obras públicas, a situação judicial de Cristina passou a dominar a agenda política nacional. Agora, além dos processos judiciais, a tentativa de assassinato instalou, definitivamente, a vice-presidente no centro da cena política nacional. Qualquer outro assunto — da inflação descontrolada ao aumento expressivo da pobreza — passará para um segundo plano.

Alguns analistas lembraram da morte do ex-presidente Néstor Kirchner (2003-2007), em 2010, vítima de um ataque cardíaco. Naquele momento, o drama da família presidencial também virou trending topic da política nacional, e Cristina, que vinha enfrentando acusações graves — entre elas a de manipular as estatísticas oficiais do país, além das primeiras denúncias de suposta corrupção — acabou sendo reeleita, em 2011.
Nas horas posteriores ao ataque, fontes e representantes do governo bateram na tecla da violência política, discursos de ódio e agressividade entre críticos da aliança governista. O que o governo não mencionou foram, por exemplo, as frases inoportunas do presidente sobre o promotor Diego Luciani, que liderou as investigações sobre Cristina no processo que terminou em pedido de 12 anos de prisão: “Até agora, o que aconteceu com [Alberto] Nisman [promotor que denunciou Cristina e, pouco depois, apareceu morto no banheiro de seu apartamento] é que se suicidou. Até hoje não se provou outra coisa. Espero que não faça alguma coisa similar o promotor Luciani”.
Após uma enxurrada de críticas, o presidente tentou se explicar, mas o impacto social negativo, na mídia e redes sociais, foi enorme.
No fim de semana passado, seguidores de Cristina que se manifestaram a favor da vice-presidente na porta do prédio onde mora, no bairro da Recoleta, quebraram vidros de prédios vizinhos e tiveram choques com a polícia da cidade de Buenos Aires, governada pela oposição. O deputado Máximo Kirchner tentou chegar ao apartamento de sua mãe e, ao ser barrado pela polícia portenha, discutiu com os policiais e foi agredido física e verbalmente. Repúdio generalizado do governo.
A violência está no ar na Argentina, e não é de hoje. Somente um observador muito distraído pode não ter percebido que governo e oposição estavam se aproximando de situações-limite, altamente perigosas. A primeira reação de todos foi uma unânime — em alguns casos conjunta — condenação ao ataque, mostrando um grau de civilidade que fazia tempo não se via no país. A sensação é de que todos se assustaram por um fato inédito na História argentina, que poderia ter terminado em tragédia, e tomaram consciência das consequências de um clima de violência política alimentado por muitos setores, do governo e da oposição.
Para Fernández e Cristina, o gravíssimo episódio representa, superado o susto, a oportunidade de retomar o controle da agenda política com uma estratégia de vitimização, já em marcha.