*Por Carlos Alberto Mattos — É bem possível que a maioria dos cinéfilos precoces desenvolva um chamego especial com os filmes de terror. E se eu estou certo, talvez Kleber Mendonça Filho seja um desses. Ele já fez pelo menos dois curtas do gênero, A Menina do Algodão e Vinil Verde. Em O Som ao Redor havia uma sequência fantasmática em torno da paranoia urbana. Retratos Fantasmas é, de certa forma, mais um filme de terror assinado por Kleber. Estreou no Brasil no último sábado, 12/8, no Festival de Gramado, e chega aos cinemas no dia 24/8.
A voz do diretor, em tom confessional, conduz esse filme-ensaio a respeito de coisas que desapareceram com o tempo em sua Recife natal. Munido de uma pletora de arquivos visuais, muitos dos quais produzidos pelo próprio Kleber ao longo dos anos, ele rumina lembranças e pequenos lampejos poéticos sobre uma cidade que se transforma vertiginosamente. Assim como tantas pelo mundo afora, o que torna o filme razoavelmente universal.
A começar por seu bairro, Setúbal, a casa onde nasceu e cresceu vendo a mãe reformá-la obsessivamente. Ao redor, uma casa vizinha entrava em decadência e era invadida pela natureza enquanto torres residenciais brotavam do chão. Ali estava não só o cenário de filmagem, mas também a semente de inspiração de filmes como Eletrodoméstica, O Som ao Redor e Aquarius. Agora a gente fica sabendo de onde vinham os latidos do cachorro que levava Maeve Jinkings à loucura em O Som ao Redor e os cupins que Sonia Braga despejava na mesa dos empreendedores imobiliários em Aquarius. Nessa rememoração de sua própria carreira, de modo parecido com o que Spielberg fez ficcionalmente em Os Fabelmans, Kleber mostra fragmentos de seus primeiros curtas, feitos com amigos e vizinhos de Setúbal. Dá pra discernir ali mais alguns traços do filme de horror.
Os fantasmas se espraiam pelo centro “do” Recife na coleta de vestígios dos cinemas de rua que se transformaram em farmácias, lojas de eletrodomésticos, igrejas e centros comerciais. Kleber documentou várias daquelas salas enquanto ainda funcionavam ou quando se despediam do seu público. Apresenta-nos o falecido “seu” Alexandre, projecionista do Art Palácio, e levanta uma história incrível sobre a relação entre aquela sala e o nazismo. Ficamos conhecendo também “seu” Paulo Barbosa, vendedor de parafernália cinefílica e também herói da cidade por uma razão menos prosaica. “É muita história”, quantifica Kleber – e nós concordamos.
As imagens da inauguração do Veneza, com sua recepção de gala brega em 1970, e do edifício que congregava os escritórios de todas as distribuidoras de filmes na cidade dizem um bocado sobre um tempo em que era preciso sair de casa para ver filmes, e estes se pegava com a mão.
Conforme o documentário progride na tela, vamos sendo tomados pela impregnação do tempo nas paredes dos prédios e quase sentimos o bafio das ruas, o suor do povo nas cenas de carnaval, a umidade calorenta de Recife. Tudo isso perfumado pela fala amorosa de Kleber quanto aos velhos cinemas, seus letreiros analógicos, suas decorações alusivas a mundos distantes, sua mística meio religiosa.
É interessantemente irônico saber que o célebre cinema São Luiz, que ainda resiste bravamente, foi construído em 1952 no lugar onde antes existia uma igreja desde 1838. Será que o destino de tantas salas darem lugar a igrejas hoje em dia não passa de uma cobrança da velha igrejinha anglicana de Recife?
A rigor, Retratos Fantasmas não trata de assuntos novos. Não é de hoje que a morte dos antigos cinemas frequenta nossas conversas. Da mesma forma, a metamorfose de Recife, a degradação de sua região central, a especulação imobiliária, a verticalização e a falta de segurança de seus bairros foram temas frequentes do que eu chamo de cine-antropologia pernambucana, florescida nos anos 2000 justamente pelas lentes de Kleber, Gabriel Mascaro, Renata Pinheiro, Sérgio Oliveira, Marcelo Pedroso e outros cineastas do estado. Ainda assim, Retratos Fantasmas nos chega com um frescor extraordinário porque dribla o óbvio e se sustenta na inteligência de seu realizador. Se a primeira parte, familiar e doméstica, constitui uma espécie de making of não dos filmes, mas do próprio cineasta – e aqui verificamos claramente como o cinema de Kleber se nutre do seu entorno – a segunda parte, voltada para os cinemas, é um sóbrio canto de amor ao seu métier. Sem derramamentos nem nostalgia, mas com uma graça suave e uma crítica em filigrana. Volta e meia, Kleber menciona figuras icônicas da vida cultural pernambucana que já não estão entre nós: Fernando Spencer, Amin Stepple, Ariano Suassuna…
Os fantasmas atravessam o filme como devem ser: em aparições imprevistas e fugazes. A narrativa é injetada de imagens, luzes e sons acusmáticos (aqueles que o espectador não sabe de onde vêm). Estão ali quase como um jogo para a percepção do público. E ainda irrompem no epílogo ficcional de Kleber a bordo de um táxi de aplicativo. Um chiste divertido para fechar um filme redondo em sua riquíssima modéstia.
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*Carlos Alberto Mattos é um crítico, curador e pesquisador de cinema. Publica também no blog carmattos.










