Do Estadão – Lula e Trump alcançaram o palco da ONU, nesta terça-feira, 23, como antípodas. Foi a primeira vez que os dois dividiram o mesmo espaço.
Lula centrou o seu discurso na defesa da soberania nacional e foi taxativo: disse que nem tarifas, nem sanções ameaçarão as instituições brasileiras.
Trump usou o púlpito para denunciar a falência das Nações Unidas e posicionar o seu governo como árbitro do planeta onde, segundo ele, a ONU hesita.
As diferenças entre os dois são flagrantes. Lula, o retirante nordestino, se apresenta ao mundo como o grande líder progressista do Sul Global.
Trump, o bilionário nova-iorquino, é o principal nome do movimento conservador mais influente da Terra.
Apesar disso, o que salta aos olhos são as semelhanças.
Lula e Trump ascenderam politicamente de forma muito parecida. Os dois emergiram, cada um em seu tempo, como símbolos da ruptura com o establishment. Ambos assumiram o papel inconteste de sacerdotes políticos de seus movimentos, apelando dia e noite a uma linguagem emocional, direta e agressiva, que aposta na retórica performática da autenticidade.

Ambos também têm a mesma origem eleitoral – o voto dos trabalhadores ressentidos. No caso de Trump, o operário das fábricas do Rust Belt, o trabalhador de colarinho azul, adepto da teoria que as elites “globalistas” venderam o seu emprego à China. No caso de Lula, o operário de fábrica convencido na promessa que os esquecidos finalmente teriam, com ele, um lugar ao sol.
Lula e Trump também comungam do hábito de se apresentar como vítimas de perseguições implacáveis. Tanto um quanto o outro não enfrentam adversários comuns à vida política, mas inimigos conspiradores financiados por sistemas empenhados em destruí-los. Nos últimos anos, os dois transformaram processos, acusações e condenações judiciais em arma eleitoral, recorrendo a um raciocínio circular: são perseguidos porque representam uma ameaça às elites; são atacados porque falam em nome do povo.
Lula e Trump também provaram ser extraordinariamente resilientes. Sobreviveram a escândalos que teriam destruído a carreira de políticos tradicionais, rejeitando o arrependimento e a retratação.
E isso só foi possível porque, para os dois, a política não é a administração racional dos recursos públicos, mas uma guerra pelo controle da narrativa construída para acelerar a história – produtos de um tempo em que o debate se tornou um espetáculo de fé, conflito e redenção. Os dois cresceram politicamente mobilizando paixões que tornam o debate público um campo perigoso de batalha moral. Ambos apostam na polarização como um mecanismo de sobrevivência política e se sentem mais confortáveis no conflito, no duelo contra as elites retóricas, no inesgotável nós contra eles, prosperando nas zonas cinzentas onde as instituições falham.
Tanto um quanto o outro tratam as instituições como peças móveis do tabuleiro político, e não freios ao poder. Trump dedica um esforço monumental contra agências, cortes e organismos internacionais que o contrariam. Lula prefere empurrar os limites do Judiciário e articular mudanças regulatórias que servem aos seus interesses. Para os dois, as regras só valem quando estão a seu serviço. Lula e Trump também dividem um certo menosprezo pela liberdade de expressão. Cada um, à sua maneira, enxerga a imprensa como um adversário político, estimulando a bajulação incessante de veículos alternativos formados por uma classe de influenciadores e jornalistas servis e partidários.
Se os adeptos do presidente americano apelidaram a imprensa de fake news, os do presidente brasileiro costumavam chamá-la de Partido da Imprensa Golpista.
Trump faz da pressão aberta à mídia um espetáculo midiático: exige a demissão de jornalistas, ameaça retirar licenças de emissoras, intimida diretamente quem o satiriza. Lula, por outro lado, não só abraça a bandeira da chamada “regulação social da mídia”, como já tentou até expulsar do país um correspondente estrangeiro e viu o seu partido elaborar uma lista negra de comediantes, jornalistas e influenciadores. No campo das ideias, as semelhanças também chamam atenção. Lula e Trump governam em nome do desenvolvimentismo, acreditando não apenas em campeões nacionais da indústria, mas no imposto como um motor de prosperidade. Para os dois, o Estado não é árbitro – é um jogador.
Ambos rejeitam a ortodoxia econômica, o livre comércio e a independência de seus bancos centrais. Os dois poderiam reencenar a mesma história, em que personagens como Jerome Powell e Roberto Campos Neto atuam como conspiradores das elites financistas.
Ambos também são céticos em relação à ordem mundial, críticos das instituições internacionais. Lula e Trump comungam de uma estranha aproximação com ditaduras. Os dois também têm certo fascínio, em especial, por Vladimir Putin.
Lula já disse que foi “ao Gabão aprender como é que um presidente da República consegue ficar 37 anos no poder e ainda se candidatar à reeleição”. Em agosto, Trump elogiou Ilham Aliyev, presidente do Azerbaijão desde 2003, dizendo que ele está há muito tempo no poder porque é “forte e esperto”.
No fim, Lula e Trump são como antípodas siameses: duas figuras que caminham em direções opostas, mas estão visceralmente ligadas por uma mesma anatomia política. Como antípodas, ocupam polos ideológicos representando visões de mundo que se confrontam em inúmeros aspectos.
Como siameses, são produtos de uma era marcada pela desconfiança nas instituições, a ascensão de líderes messiânicos e da política como espetáculo.
Lula é o herói redentor, pai dos pobres, filho do Brasil profundo. Trump é o justiceiro bilionário, nascido das entranhas da elite para destruí-la e reconstruí-la.
Os dois disputam o mapa, mas compartilham a bússola: a crença de que a vontade deles pode redesenhar a realidade à força.
Eles não são iguais, mas são equivalentes. E no espelho da política do século 21, as suas imagens, invertidas, parecem estranhamente se complementar.









