Do UOL – A Polícia Federal investiga um esquema de desvio de recursos que teria como chefe o secretário de Saúde de Alagoas, o médico Gustavo Pontes Miranda, afastado do cargo na terça-feira por ordem do TRF-5 (Tribunal Regional Federal da 5ª Região).
Detalhes da apuração da PF dentro da operação Estágio 4, que indica que parte do dinheiro desviado do SUS teria sido usada por Gustavo para comprar uma casa em Brasília e um flat à beira-mar em Maceió para Andreia Araújo Cavalcante, apontada pela Polícia Federal como amante do secretário.
A PF acredita que Gustavo, que ocupava o cargo de secretário desde maio de 2022, seria o líder de uma organização criminosa, com indícios de corrupção relacionada a contratações na Secretaria de Saúde de Alagoas. Ao todo, mais de R$ 100 milhões em pagamentos são alvo da apuração. Obras e prestações de serviços de saúde apresentam indícios de desvio.

Gustavo é de uma família alagoana com grande destaque nacional, como a psiquiatra Nise da Silveira e o jurista Pontes de Miranda —ele é sobrinho-bisneto de ambos.
Os laços
Segundo a PF, conversas interceptadas apontam que Andreia e Gustavo mantinham uma relação extraconjugal com “alto nível de intimidade” —para a PF, ela se comportava como “verdadeira cônjuge” do secretário.
A PF identificou que Andreia movimentou R$ 4,99 milhões entre 1º de janeiro de 2023 e 28 de agosto de 2024 —período de quebra do sigilo bancário—, valores bem acima dos rendimentos declarados à Receita Federal.
Andreia figura como dona e moradora de uma casa de luxo recém-construída na quadra 1 do SMPW (Setor de Mansões Park Way) em Brasília.

Ela assinou o contrato de promessa de compra e venda com o então proprietário no valor de R$ 1,69 milhão, em julho de 2023. Em seguida, Gustavo assinou uma confissão de dívida, na qual ele assume o pagamento das parcelas relativas ao negócio previsto para ser quitado em julho de 2024.
A PF obteve a cópia de um cheque no valor de R$ 200 mil assinado por Gustavo em 27 de julho de 2023. No mesmo dia, obteve um recibo do proprietário, confirmando o recebimento do valor.
A PF também localizou documentos que revelam a aquisição de outro imóvel em nome de Andreia: um flat no 8º andar de um prédio à beira-mar no bairro de Cruz das Almas, em Maceió.
Ela assinou uma minuta de contrato de promessa de compra e venda no valor de R$ 797 mil. Segundo a PF, Andreia pagou R$ 210 mil a título de sinal, entre julho e setembro de 2024. Rendimentos incompatíveis

A PF sustenta que Andreia não teria capacidade financeira para realizar as aquisições. Ela é dona de uma pequena loja de roupas criada em outubro de 2020 em Brasília, com capital social de R$ 5 mil.
Segundo a investigação, essa empresa realizou remessas de apenas R$ 8,4 mil em cinco operações, entre janeiro de 2023 e agosto de 2024, o que reforça a suspeita de que a butique não gera rendimentos relevantes.
Apesar de morar em Brasília, Andreia mantinha ainda dois vínculos públicos em Alagoas: na Secretaria de Saúde e na Assembleia Legislativa. Em ambos, segundo a PF, ela não comparecia ao trabalho.
Os extratos bancários analisados indicam que a remuneração mensal máxima dela na Secretaria, desde fevereiro de 2023, foi de R$ 7.482,50. Já na Assembleia Legislativa, a partir de junho de 2023, a remuneração máxima foi de R$ 15.278,18.
Somados, no período analisado, os dois vínculos renderam cerca de R$ 299 mil, valor longe de justificar a aquisição dos imóveis.
Andreia ainda desfrutava de regalias, como ter à disposição motoristas particulares em Brasília e em Maceió. Ela viajava frequentemente a Maceió, com voos mensais mapeados pela PF entre julho de 2023 e abril de 2024.
Dinheiro suspeito
Ao longo de 2023 e 2024, Andreia recebeu depósitos de altos valores de pessoas físicas e jurídicas prestadoras de serviço à Secretaria de Saúde —e que também são investigadas pela PF por suspeita de pagamento de propina.
Ela recebeu, por exemplo, depósitos de empresa de produtos médicos e hospitalares e de uma construtora responsável por obras em hospitais de Alagoas.
Além disso, a PF mapeou depósitos feitos para Andreia pelo dono da clínica NOT (Núcleo de Ortopedia e Traumatologia), em Maceió, apontado como peça central do esquema de desvio de recursos e da qual Gustavo foi sócio-proprietário até 2023.
Um dos depósitos citados, no valor de R$ 50 mil, foi feito em 4 de abril de 2024, período similar ao dos repasses da Secretaria à clínica.
Entre os comprovantes reunidos, consta o aluguel de uma lancha por R$ 50 mil para passeio de Andreia na Barra de São Miguel (litoral sul de Alagoas), que teria sido pago pelo dono da NOT.

Saída só no papel
Embora Gustavo tenha deixado formalmente a sociedade da NOT em 1º de junho de 2023, a PF encontrou mensagens e indícios de que o desligamento ocorreu apenas de fachada, e que ele seguia como um dos verdadeiros donos da empresa.
Gustavo saiu do contrato social e transferiu suas cotas para o médico Reinaldo Fernandes (dono da clínica, no papel) pelo valor de R$ 24 mil, valor baixo que chamou a atenção dos investigadores.
Entretanto, a apuração descobriu que a NOT concedeu antes um crédito de R$ 4 milhões a Gustavo, valor que consta na declaração de bens à Receita Federal referente de 2023.
Esse valor, segundo a PF, abriu espaço para movimentações financeiras ilícitas nos anos seguintes.Depois de deixar a sociedade, Gustavo ainda recebeu R$ 600 mil, em 31 operações bancárias da NOT. De Reinaldo, foram feitos outros repasses que somaram R$ 978 mil (feito pela pessoa física) e R$ 1,9 milhão (feito pela pessoa jurídica R. Fernandes Junior Serviços Médicos).
Saída para desvio do SUS, segundo PF
Um mês após Gustavo deixar a sociedade, a NOT foi cadastrada pela Secretaria de Saúde de Alagoas no programa Mais Saúde/Especialidades, vinculado ao SUS. Entre janeiro de 2023 e agosto de 2024, a empresa apresentou direito a créditos por serviço no valor de R$ 6,5 milhões.
A PF analisou as prestações de contas da produção da NOT paga pelo SUS no período e encontrou discrepâncias consideradas graves, indicando que a clínica teria informado mais serviços do que sua capacidade operacional.
Em fevereiro de 2024, por exemplo, a empresa cobrou 22.752 sessões de fisioterapia feitas pelo SUS —que é apenas um dos serviços contratados pelo programa.
Isso representaria, caso a clínica funcionasse 24 horas por dia e sete dias por semana, 95 atendimentos por hora, algo que a PF considera impossível em uma estrutura anunciada de apenas seis fisioterapeutas.Somente para serviços de fisioterapia, os documentos apontam empenhos de despesas pagas pela secretaria de R$ 2,3 milhões entre agosto de 2023 e fevereiro de 2024.
O que dizem os suspeitos
Em nota, o secretário afastado Gustavo Pontes de Miranda afirmou que tem mais de 30 anos dedicados à medicina e à atividade empresarial, “jamais sendo citado em qualquer investigação de natureza criminal”. “Isso porque, simplesmente, nunca pratiquei absolutamente nenhum ilícito penal. Ao contrário, dedico minha vida a salvar outras, tanto na iniciativa privada como no âmbito da administração pública”, afirmou.
Ele ainda classificou a operação como um “abuso” da PF, que teria ignorado suas competências ao ignorar falta de “evidência de competência de atuação federal” —ou seja, como não haveria recurso da União, deveria ser alvo de órgãos estaduais.
Reforço que o uso de recursos públicos na minha gestão sempre foi empreendido de maneira transparente, disponível para consulta pública e aberta a qualquer tipo de fiscalização.
Gustavo Pontes A coluna tentou entrar com contato com Andreia, mas ela não respondeu aos telefonemas e mensagens enviadas por WhatsApp. O advogado dela e de Reinaldo, Marcos Nobre, também foi contatado, mas não respondeu. O texto será atualizado, em caso de manifestação.
Governo monta comissão
Após a operação da PF, o governo de Alagoas criou uma comissão especial, chefiada pelo secretário-chefe do Gabinete Civil, Vitor Pereira, com a presença da Controladoria-Geral do Estado e da Procuradoria-Geral do Estado.
O objetivo do grupo, diz a nota, é “acompanhar, colaborar e prestar todas as informações necessárias aos órgãos de investigação, garantindo o pleno respeito ao devido processo legal, ao contraditório e à presunção de inocência, princípios fundamentais do Estado democrático de Direito”.
O governo de Alagoas reafirma que não compactua com qualquer tipo de irregularidade, especialmente quando envolve recursos públicos destinados à saúde, e que sua orientação é de colaboração total, transparente e irrestrita.
– Nota do governo








