*Por Jones Manoel — Na Alemanha Ocidental no pós-Segunda Guerra, tinha uma piada falando que “vovô não era nazista”. A piada ironizava um tipo de memória social onde o nazista era só o Outro, alguém estranho ao corpo social, quase um extraterreste.
A ironia era uma crítica a ocultação da ligação orgânica entre nazismo e a sociedade alemã. Parecia que um belo dia, Hitler e seus amigos, sozinhos, subjugaram toda sociedade, enganaram todos, dominaram todos, todos foram vítimas de Hitler.
Essa narrativa, é claro, esconde o sucesso pré-nazista na cultura alemã (europeia e ocidental de forma mais geral) de teorias racistas e eugênicas, clamores imperialistas, a legitimidade de práticas antissemitas, os interesses econômicos e políticos em jogo.
Nesse tipo de narrativa, o fato do nazismo representar os interesses da burguesia alemã e ter sido bem aceito por boa parte do sistema político, é ocultado. O processo histórico vira um mito incompreensível, uma loucura, uma falha temporária, obra de um único “louco”.
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Quem nunca leu ou assistiu um vídeo que especula sobre a psicologia individual de Hitler? Ou que busca explicar sua “maldade”? Quem não sabe que ele não foi aceito como pintor e, dizem as lendas, os avaliadores eram judeus e – mágica! – assim surgiu o antissemitismo nazista.
A indústria cultural, ao menos nos últimos 40 anos, ganhou muito dinheiro transformando o nazismo em um mito, criando uma ideologia individualista em torno de Hitler que esconde o caráter de classe e os fundamentos político-econômicos do nazismo.

No Brasil, nesse momento, acontece o mesmo com o bolsonarismo. Vovô não era bolsonarista! O Bolsonarismo é descolado do lavajatismo, liberalismo econômico, racismo, violência policial, fundamentalismo religioso, interesses do imperialismo, latifúndio, contrarreformas etc.
Bolsonaro vira só um indivíduo, louco, um burro, sádico, uma criança, um incompetente, um malvado. Nos próximos meses e anos, teremos muito material sobre a psicologia individual de Jair. Gente especulando a origem de sua “maldade” e ninguém, ninguém mesmo, foi bolsonarista.
Certa vez, muitos anos atrás, um grande pensador disse: não me importa se você é racista. Importa se você tem poder de oprimir a partir do racismo. Racismo é uma questão de poder e não consciência individual. Essa lógica serve bem para pensar o bolsonarismo.
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Não tenho dúvidas que Bolsonaro, individualmente, é um ser miserável, perverso, fascista. Mas a questão é que interesses políticos e econômicos, que classes sociais, que grupos de apoio, ofereceram condições para ele exercer seu projeto liberal de morte. Essa é a questão.
Bolsonaro odeia o Brasil e o povo trabalhador brasileiro desde sempre. Mas só recentemente ele teve condições políticas e instituições para declarar guerra ao povo trabalhador. A partir de que condições, instituições e interesses isso foi operado? Essa é a questão.
Transformar Bolsonaro em um mito, fazer do processo histórico algo incompreensível, realizar o “culto negativo da personalidade” é a melhor forma de deixar nas sombras a burguesia, a classe dominante, que formou esse projeto e se lambuzou em sangue.
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*Jones Manoel é historiador pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), mestre em Serviço Social, professor e educador popular.