Por Natália Portinari, do TAB Uol – Mensagens enviadas ao STF (Supremo Tribunal Federal) pela Polícia Federal na Operação Overclean, obtidas pelo UOL, mostram como funcionava o caminho do desvio de emendas Pix —verbas que, antes da intervenção do Supremo, podiam ser usadas livremente por estados e prefeituras.
Sem precisar cadastrar projetos específicos, parlamentares tinham poder de enviar dinheiro para qualquer município. Em alguns casos, a verba foi repassada a empresários em licitações suspeitas de fraude, como apura agora a PF.
Nos casos na mira da Overclean, depois de sair dos cofres públicos, o dinheiro circulou por empresas, algumas em nome de laranjas e, depois, parte dele teria sido distribuído como propina entre empresários, prefeitos e parlamentares.
No final de junho, a sexta fase da operação teve como alvo um potencial esquema de propina no gabinete do deputado Félix Mendonça Júnior (PDT-BA).
Por ordem do STF, foram afastados os prefeitos de Boquira (BA) e Ibipitanga (BA), que agora já voltaram ao exercício de seus mandatos.
A troca de mensagens que embasa a investigação, obtida pelo UOL, é entre o empresário Evandro Baldino do Nascimento —um dos membros da suposta organização criminosa investigada na Overclean— e Marcelo Chaves Gomes, o assessor de Félix.
As conversas mostram o uso de códigos como “caloi”, “platitas”, “laplatina”, “garfo”, “soldas”, “garrotes” e “praguinhas” para se referir a dinheiro e diversas menções a supostos pagamentos feitos por Evandro a Marcelo, que trabalhava na liberação de emendas para os prefeitos investigados.
Procurada, a defesa de Marcelo disse que, como o caso tramita em segredo de Justiça, “esta restrição de publicidade impede, neste momento, comentários ou divulgações de quaisquer detalhes sobre a investigação”.
“A defesa reitera, de forma veemente, a total e absoluta inocência do seu constituinte, afirmando que as suspeitas levantadas são improcedentes e serão categoricamente refutadas no momento oportuno.”
O deputado Félix diz que nunca tratou de emendas com Evandro e não enviou dinheiro para as empresas dele. O UOL procurou a defesa do empresário, mas não obteve resposta.

Investigações no Supremo
A Overclean tramita no STF no gabinete do ministro Nunes Marques, responsável pela operação desde o início do ano, quando surgiram indícios do envolvimento do deputado Elmar Nascimento (União-BA) no esquema.
Também é investigado o deputado Dal Barreto (União-BA), alvo da última fase da operação, entre outros parlamentares que enviaram emendas para as prefeituras alvo da investigação, que ainda estão sendo escrutinadas.
As emendas estão na mira do Supremo. Em processo sob relatoria do ministro Flávio Dino, o STF mudou o trâmite das emendas Pix, impondo que elas tenham um plano de trabalho. Esses planos estão sendo avaliados pelos ministérios, o que vem causando reclamações no Congresso, já que a emenda não é mais um repasse imediato.
Como já mostrou o UOL, o STF tem apurações criminais em andamento sobre emendas enviadas por pelo menos outros oito parlamentares.
Indícios contra o deputado
A PF vê indícios de participação de Félix Mendonça no esquema investigado pela Overclean —o que ele nega. Um deles é o fato de a namorada de Evandro, Patrícia Porfírio, ter sido empregada no gabinete de Félix.
Nas conversas que tratam disso, Evandro e Marcelo citam um “combinado” com o deputado, que seria para ela ficar com um cargo melhor no gabinete.
No início de 2023, Evandro reclama do deputado por ela ter sido empregada —segundo a PF, como funcionária fantasma— com um salário de R$ 8.100.
Marcelo tenta apaziguar, dizendo que era um “bom negócio”, com 40 meses, quatro décimos e quatro férias. “48 x 8.100 = 388.800,00. Não tem aplicação no mundo que dê isso.” Evandro responde que sabia que Félix descumpria compromissos de política, mas “os compromissos de negócio não rs”.
Ao UOL, o deputado disse que Evandro indicou uma assessora para ajudar com a articulação no interior da Bahia. “Ela ficava no interior, foi exonerada porque não estava dando resultado.” Questionado sobre se ela cumpria os horários de trabalho, disse que os assessores que trabalham no estado não têm que bater ponto.
Em novembro de 2020, houve uma reunião em Salvador com Félix Mendonça, Evandro e Beto (PT), então recém-eleito prefeito de Ibipitanga (BA).
Marcelo, assessor do deputado, depois pergunta a Evandro: “Teve lá?”. “Estivemos”, responde. “Foi boa a conversa?”. “Foi boa”. “Vamos colocar emendas lá (em Ibipitanga).” “Isso.” “Para a Impacto (empresa de Evandro) construir”. Evandro então responde com um emoji de duas mãos rezando.
No fim das contas, a Impacto não foi contratada pela prefeitura, e sim outra empresa ligada a Evandro, a Ativa Projetos e Serviços.
Depois disso, Félix Mendonça enviou R$ 9,1 milhões em emendas para Ibipitanga, incluindo R$ 4,1 milhões em transferências especiais, as emendas Pix.
“Nunca procurei saber quem executa as obras com as minhas emendas, mas depois desse problema procurei saber. Ele não teve nenhuma negociação comigo”, disse o deputado.
A PF suspeita que Baldino e Marcelo se referiam ao deputado como “nosso amigo” e “o homem”, o que é reforçado por uma coincidência de datas. Nos momentos em que os dois marcaram reuniões para pagar o “amigo”, em 12 e 16 de setembro de 2024, Félix Mendonça estava em Salvador.
“A presença de Félix Mendonça em Salvador nas datas críticas das negociações reforça a suspeita de que ele tinha conhecimento ou participação nas movimentações financeiras ilícitas.”
Em uma das conversas, Marcelo também diz a Evandro que “o chefe” queria seu avião emprestado. Como mostrou o UOL, Félix era um dos deputados que usavam regularmente o avião de Alex Parente, outro integrante do grupo de Evandro.
Tanto a PGR (Procuradoria-Geral da República) quanto o STF consideraram que os indícios eram insuficientes para realizar uma busca contra Félix Mendonça.
“Não sou o ‘amigo’. Com emendas, meu intuito é ter retorno político. Nunca recebi nenhum retorno financeiro, não sou bandido”, disse o deputado.
José Eduardo Alckmin, advogado de Félix, disse ao UOL que seu cliente tem interesse em apoiar prefeitos em seus projetos, mas que não participou de nenhuma outra negociação com os investigados.

Pressão por propina
De 2023 a 2024, em diversas ocasiões, Marcelo cobra Evandro com uma referência a uma propaganda dos anos 1970, em que uma criança pedia que os pais não esquecessem de comprar uma Caloi para ela —mas também falando abertamente de dinheiro às vezes.
Nas eleições de 2024, por exemplo, após Marcelo solicitar R$ 75 mil para ele, Evandro se queixa da dificuldade em obter dinheiro em espécie durante o pleito. “O papel sumiu. Os caras estão pagando caro a quem tiver papel na mão. Esses 28 dias aí (da eleição) vai ser uma loucura por papel”, disse.
Após Evandro demorar para responder sobre suas “soldas”, Marcelo chegou a cobrar diretamente por um Pix de R$ 20 mil em sua conta em outubro de 2024. Evandro responde que conversariam no dia seguinte.
Contratos nos municípios
Em 2021, quando os prefeitos tomaram posse, uma empresa de serviços técnicos de engenharia ligada a Evandro ganhou contratos em Ibipitanga e Boquira.
Em agosto de 2023, Marcelo pede a Evandro o contato do prefeito de Boquira, Alan França (PSB). “Vou falar com ele que meu aniversário foi dia 11/08 e a Caloi não chegou”. A cidade tinha recebido uma emenda de bancada de R$ 492 mil, direcionada pelos deputados da Bahia para assistência hospitalar, em 28 de julho.
Em setembro de 2024, em conversas com seu suposto operador financeiro, Evandro pede R$ 40 mil para “Boquira”. Quando o valor é transferido para a conta de um posto de gasolina, o empresário avisa o prefeito. “Meu prefeito, já encaminhamos, viu”, escreve para Alan.
Em Ibipitanga, segundo a PF, Marcelo cobrou até que a empresa de Evandro fosse contratada pela prefeitura e, depois de Félix enviar emendas, em meados de 2023, pressionou novamente pela suposta propina.
“Me ajude Badino! Ibipitanga tá cheio da platita”, disse Marcelo a Evandro, enviando prints do repasse de emendas parlamentares para a cidade.
Na época, ele encaminhou também informações sobre as emendas ao prefeito Beto, que respondeu: “Pronto, Marcelo. Já falei com Evandro para liberar um negócio lá para você. Vai dar certo.”
Em seguida, mensagens indicam o recebimento da propina: “Estive com Beto hoje no shopping. Ele disse que meu negócio já estava contigo e eu podia passar aí para pegar”, diz Marcelo a Evandro Baldino em julho de 2023.
As mensagens indicam que Evandro intermediava também a contratação de outras empresas com verba de emendas, e não apenas da sua, já que seus contratos com Boquira e Ibipitanga somavam pouco mais de R$ 1 milhão, valor menor que as emendas enviadas.
O ex-prefeito de Paratinga Marcel José Carneiro de Carvalho (PT) também foi alvo de busca e apreensão da PF no final de junho. Mensagens mostram que o operador financeiro de Evandro repassou R$ 100 mil para Marcel em setembro de 2024. Os comprovantes foram encaminhados ao então candidato.
Procurada, a defesa afirmou que nada ficou provado contra o ex-prefeito e que provará, ao longo da instrução, que seu cliente não praticou nenhum ato lícito. “A defesa confia plenamente na absolvição do ex-prefeito.”
Na conversa com o suposto operador, dono de um supermercado e apontado como responsável por “fabricar” dinheiro vivo, Evandro cita remessas de dinheiro para Boquira, Ibipitanga e Paratinga, cidades onde ocorreram as diligências da sexta fase da Operação Overclean, no final de junho.









