*Por Reinaldo Azevedo — Só o desespero eleitoral, que lhe impõe criar factoides para manter unida a sua tropa nas redes sociais, justifica a mais recente sandice de Jair Bolsonaro: entrar com uma notícia-crime no Supremo, por intermédio de um advogado privado, contra o ministro Alexandre de Moraes, acusando-o de atos que caracterizariam abuso de autoridade (Lei 13.859). As contas do próprio presidente nas redes sociais anunciaram o feito ontem à noite. Um dos principais alvos da peça de propaganda — já que não se relata notícia-crime nenhuma, mas só especulações sem fundamento — é o Inquérito 4.781, conhecido como “das fake news”, aberto de ofício no dia 14 de março pelo então presidente do tribunal, Dias Toffoli. Ah, sim: Toffoli é o relator do troço, assinado pelo advogado Eduardo Reis Magalhães, do Paraná.
Embora busque afetar uma linguagem elevada, fica difícil disfarçar a falta de fundamento da ação e seu caráter de provocação, uma vez que se esforça para apontar crime onde há apenas exercício regular das funções de um juiz. Em 21 páginas, Moraes é chamado de “noticiado” nada menos de 32 vezes. Parece tratar-se de um esforço estilístico para caracterizar o ministro como um notório descumpridor da lei. Chega a ser patético.
É tal a paixão pela palavra que o doutor comete um erro: no item 3 do Item VI, em vez de se referir a Bolsonaro como “noticiante”, trata-o por… “noticiado”. Moraes é uma das obsessões do presidente.
Bolsonaro acusa o ministro de ter incorrido nas seguintes práticas previstas na lei que pune abuso de autoridade:
1: duração não razoável da investigação;
2: negativa de acesso aos autos;
3: prestar informações inverídicas em juízo;
4: exigir cumprimento de medidas sem amparo legal;
5: instauração de inquérito sem justa causa

1 – A DURAÇÃO
O advogado que redigiu a peça acusatória em nome de Bolsonaro sabe que o juiz determina, na prática, a duração de um inquérito no caso de não haver prisões. Em sua peça, evoca o Artigo 230-C do Regimento Interno do Supremo, que estabelece o prazo de 60 dias e expressa inconformismo com a duração do inquérito das “fake news”. Esqueceu de citar o Parágrafo 1º de tal artigo, a saber:
“O Relator poderá deferir a prorrogação do prazo sob requerimento fundamentado da autoridade policial ou do Procurador–Geral da República, que deverão indicar as diligências que faltam ser concluídas”. SEM PRAZO.
Ciente de que assim é, argumenta-se que, se a instrução de uma ação penal não pode durar mais de dois anos, então o prazo do inquérito deveria ser ainda menor. É uma opinião e uma tese, não uma lei.
2 – ACESSO AOS AUTOS
Bolsonaro acusa Moraes de ter dado acesso aos autos, no inquérito das “fake news”, apenas ao “Apenso 70”, que a própria peça acusatória admite tratar das pessoas investigadas. Nada impõe — muito pelo contrário — que investigações ainda em curso sejam tornadas públicas. Isso é um fundamento consagrado. E quem decide este “em curso”? Aquele a quem cabe decidir: o juiz — no caso, Moraes.
Não havendo argumentação legal, resta a opinião de quem redige a peça, em nome de Bolsonaro:
“Não é crível admitir que, após mais de três anos de investigações, ainda existam diligências em curso que tenham o condão de impedir a vista de todo o encarte processual por parte das defesas”.
É uma opinião e uma tese, não uma lei.

3 – PRESTAR INFORMAÇÕES INVERÍDICAS EM JUÍZO
É uma acusação grave, que vai além da simples diferença de interpretação sobre diplomas legais,
Trata-se de uma exacerbação retórica, que se desdobra a partir da acusação anterior. Como o ministro afirmou que as respectivas defesas dos investigados tiveram acesso aos autos que podiam ser acessados e como Bolsonaro, por intermédio de seu defensor, avalia que não, então se parte para o confronto: Bolsonaro e seu advogado estão dizendo que o ministro mentiu de forma deliberada. E creio que isso tem um peso específico.
4 – CUMPRIMENTO DE MEDIDAS SEM AMPARO LEGAL
A aberração, como se sabe, não é assinada pela Advocacia Geral da União. O curioso é que, nesse particular, o presidente decidiu atuar como advogado daqueles que, investigados no inquérito das “fake news” (4.781) e/ou no das “milícias digitais”, tiveram proibido o acesso a redes sociais.
Diz a peça acusatória, sempre lembrando que o “noticiado” é Moraes:
“Olhos postos nos autos, verifica-se que, em 26.05.20, o ora Noticiado determinou – de modo amplo e irrestrito – o bloqueio “de contas em redes sociais, tais como Facebook, Twitter e Instagram, dos investigados”, sendo que tal medida seria necessária para “a interrupção dos discursos com conteúdo de ódio, subversão da ordem e incentivo à quebra da normalidade institucional e democrática”. Contudo, tal medida não encontra amparo legal no que dispõe o art. 319 do Código de Processo Penal e, na extensão em que foi decretada, contraria o que prevê o art. 19, §1º, da Lei nº 12.965/14. Logo, trata-se de medida atípica e ilegalmente extensa.”
Ainda que Bolsonaro esteja tentando defender Allan dos Santos e outros, é preciso ter um pouco de modéstia no desatino. Tenho muitos amigos advogados. Alguns já pegaram causas difíceis, impossíveis de vencer, porque: a) todos têm direito a um advogado, e isso é um fundamento da civilização democrática; b) grandes profissionais se fazem na adversidade. Mas eles me dizem: é preciso tentar evitar o ridículo.

O Artigo 319 do Código de Processo Penal, que traz as medidas cautelares, é de 2011, quando as redes sociais não tinham o peso que têm agora. Mas o contínuo atento de um escritório de advocacia perceberia que a restrição de acesso às redes sociais está nos Incisos II e III do referido artigo:
II – proibição de acesso ou frequência a determinados lugares quando, por circunstâncias relacionadas ao fato, deva o indiciado ou acusado permanecer distante desses locais para evitar o risco de novas infrações;
III – proibição de manter contato com pessoa determinada quando, por circunstâncias relacionadas ao fato, deva o indiciado ou acusado dela permanecer distante.
Imaginem a hipótese ridícula: alguém cumpriria medida cautelar, sendo proibido de frequentar determinados lugares ou de manter contato com determinadas pessoas, mas com amplo acesso às redes sociais…
Que parte Bolsonaro e seu advogado fingem não entender?
5 – INSTAURAÇÃO DE INQUÉRITO SEM JUSTA CAUSA
A pendenga aí diz respeito à inclusão de Jair Bolsonaro no inquérito das “fake news”, a pedido do Tribunal Superior Eleitoral, em consequência da “live” em que anunciou a apresentação de provas de fraude nas eleições. Não havia prova nenhuma. Na opinião do próprio Bolsonaro e de seu advogado, ele apenas exerceu a liberdade de expressão, ancorando-se em opinião — e também é uma opinião! — da Procuradoria Geral da República. Ocorre que o Ministério Público é determinante, e sua posição é mandatária, na abertura de ação penal. A PGR não tem competência para encerrar um inquérito.
A PGR também é evocada em outro momento, quando se censura o ministro por ter encerrado o Inquérito 4.828, dos atos antidemocráticos, e aberto, em seguida, o 4.874, das milícias digitais. A PGR, de fato, anunciou que não ofereceria denúncia contra ninguém porque não via crime nenhum… Ocorre que lá estavam os milicianos digitais, que o órgão preferiu ignorar. E Moraes abriu a nova investigação. Acertadamente.

SUSPEIÇÃO?
É evidente que esse troço não vai dar em nada.
Bolsonaro está apenas alimentando seus canibais.
Tão logo ele próprio anunciou nas redes a notícia-crime contra Moraes, uma de suas lorpas nas redes sociais comemorou, com ar de triunfo: como Bolsonaro estaria processando o ministro, estão este estaria automaticamente impedido de julgar qualquer coisa que dissesse respeito ao presidente porque suspeito.
Já imaginaram? Para se livrar de um juiz, bastaria processá-lo. Pô, o PT poderia ter pensado nisso antes, né?, e ter afastado Sergio Moro da coisa toda.
Ocorre que ASSIM NÃO É.
Define o Artigo 256 do Código de Processo Penal:
“A suspeição não poderá ser declarada nem reconhecida, quando a parte injuriar o juiz ou de propósito der motivo para criá-la.
Define o Inciso I do Parágrafo 2º do Artigo 145 do Código de Processo Civil:
“Será ilegítima a alegação de suspeição quando houver sido provocada por quem a alega”.
ENCERRO
Bolsonaro está querendo dizer: “Estou tentando de tudo para não dar um golpe; até recorro à Justiça”.
Recorrer à Justiça é um direito de todo cidadão. Tentar dar golpe é coisa de criminoso.
O primeiro ato rende, no máximo, um “não”. Para o outro, há a cadeia.
________________________________________
*Reinaldo Azevedo é jornalista e contribui para o UOL, a Folha de São Paulo e a Rádio BandNews.