Do Jornal do Commercio – Herbert Vinicius, atualmente com 21 anos, sofreu um grave acidente de carro em 2023, em São Paulo. Ele teve traumatismo craniano, passou por uma cirurgia cerebral de nove horas e iniciou um longo processo de reabilitação.
Ainda quando estava internado, recebeu a notícia da aprovação no curso de Medicina da UFPE — uma das instituições mais reconhecidas do país na área. Paraplégico em decorrência do acidente, Herbert enfrentou meses de recuperação até conseguir, em setembro deste ano, iniciar o primeiro período do curso.
Mas a conquista foi rapidamente ofuscada por uma dura realidade: a universidade não estava preparada para recebê-lo.

No primeiro dia de aula, ao chegar ansioso ao Centro de Ciências da Saúde (CCS) e tentar assistir à disciplina de Anatomia — uma das mais importantes da formação médica —, descobriu que o laboratório ficava no terceiro andar de um prédio cujo elevador estava quebrado.
“Perguntei onde era a aula, me disseram que era no laboratório. Quando cheguei, vi que não dava para subir. Fiquei de fora”, relata.
Desde então, a trajetória de Herbert tem sido marcada por obstáculos físicos e institucionais. Escadas, calçadas quebradas e rampas inclines demais tornaram-se parte da rotina. Ainda assim, ele encontrou solidariedade na turma, que chegou a se recusar a participar de aulas práticas sem a presença dele.
“Eles disseram: ‘Se o Herbert não sobe, a aula não vai acontecer.””
Solução imprópria expõem descaso
A mãe de Herbert, a enfermeira Rozilda Maria, procurou a universidade para questionar as condições de infraestrutura que impedem o filho de frequentar as aulas. A resposta do setor responsável expôs ainda mais o descaso: a “solução” oferecida foi transportar o estudante pelo elevador de serviço — que também está quebrado.
O problema vai além do defeito: o elevador é destinado exclusivamente ao transporte de corpos em decomposição conservados em formol, utilizados nas aulas de Anatomia. Uma placa visível na porta proíbe expressamente a circulação de estudantes e funcionários no local.
“Ninguém tem a responsabilidade de ajudar”

A realidade de Herbert é compartilhada por outros estudantes com deficiência. Alice Xukuru, aluna do sexto período de Terapia Ocupacional, enfrenta barreiras semelhantes. Cadeirante, ela já reprovou três vezes na disciplina de Anatomia. O motivo? O mesmo: o elevador quebrado.
“Sem o elevador, não consigo chegar ao laboratório. Já fiquei presa dentro do prédio várias vezes. Isso atrasou meu curso e corro o risco de ser jubilada”, conta.
Alice denuncia a falta de estrutura, apoio e sensibilidade por parte da instituição. Apesar de o curso formar profissionais especializados em inclusão, o ambiente acadêmico contradiz o próprio conteúdo ensinado.
“Não tenho assistente, não recebo auxílio e preciso me deslocar entre prédios distantes, sozinha, empurrando minha cadeira.”
A estudante também denuncia a ausência de banheiros acessíveis adequados. O único banheiro adaptado identificado fica dentro da sala da gestão, com acesso restrito aos estudantes.
Alice explica que, além das barreiras físicas, o cotidiano é marcado pela constante necessidade de pedir ajuda — e pela falta de acolhimento.
“A gente precisa estar pedindo ajuda o tempo todo. Mas dá pra perceber que ninguém quer assumir essa responsabilidade, porque todo mundo já está sob pressão aqui dentro da universidade. Cada um cuida do seu, e a gente acaba ficando sozinha, se sentindo solitária e triste. Isso afeta muito o nosso psicológico. Essa é a minha realidade.”
Os impactos emocionais, segundo ela, são tão graves quanto os obstáculos estruturais. Alice lembra que, no início do curso, enfrentou um quadro severo de sofrimento mental:
“Entrei em depressão. A gente se sente sozinha, porque ninguém quer ter a responsabilidade de ajudar. É um fardo que a gente carrega todos os dias.”
O que diz a lei
As dificuldades relatadas pelos estudantes ferem diretamente a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Lei nº 13.146/2015), que garante acesso à educação em igualdade de condições, com adaptações físicas, comunicacionais e pedagógicas.
Além disso, o Decreto nº 5.296/2004 e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB – Lei nº 9.394/96) reforçam a obrigação das universidades públicas de garantir condições adequadas de permanência e aprendizagem. A presença de núcleos de acessibilidade também é prevista por lei — mas, na prática, estudantes relatam que esses núcleos são ineficazes.
O que diz a UFPE
Procurada pelo JC, a Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) respondeu, por meio de nota, que está ciente das reclamações feitas por estudantes de Medicina e afirma estar tomando providências para resolver os problemas relacionados aos dois elevadores.
“A UFPE está tomando as providências para resolver os problemas referentes aos dois elevadores. Em relação ao elevador que dá acesso ao Laboratório de Anatomia, a instituição informa que já teve a autorização de serviço e deverá operar até a quarta-feira dessa semana. O outro elevador deverá voltar a funcionar no final do mês, pois está providenciada a compra de peças para o seu conserto.”
Sobre o papel do Núcleo de Acessibilidade e as medidas de inclusão, a universidade reforça:
“O Núcleo de Acessibilidade faz atendimento individualizado, levando em consideração a situação de cada estudante, seja cadeirante ou deficiente visual, deficiente auditivo ou autista, apenas citando algumas das deficiências dos estudantes. Mas, infelizmente, ainda existem barreiras arquitetônicas no campus que dificultam a vida dos deficientes, já que muitos prédios são antigos e não contaram, por ocasião de suas construções, com rampas de acessibilidade. Aos poucos, a UFPE está providenciando adaptações nos prédios, implantando rampas e elevadores, dentro das condições financeiras de que dispõe.”
Apesar disso, estudantes ouvidos pela reportagem afirmam que não recebem o suporte prometido, e questionam a efetividade das ações do núcleo e da gestão universitária.
O que diz o Diretório Acadêmico de Medicina
Em nota, o Diretório Acadêmico de Medicina Umberto Câmara Neto (DAMUC) expressou indignação com as condições de acessibilidade na Faculdade de Medicina da UFPE.
O grupo denuncia que, mesmo após a entrega do Laboratório de Anatomia, interditado desde julho por falta de manutenção, os alunos do primeiro período seguem sem acesso às aulas práticas porque os elevadores que levam ao espaço continuam quebrados.
O DAMUC afirma que a reitoria descumpriu dois prazos para o conserto e cobra solução imediata, destacando que as dificuldades de mobilidade atingem todo o campus, com calçadas danificadas, ausência de rampas e banheiros adaptados, o que compromete a permanência e o desempenho de estudantes com deficiência.
“Nossa luta não é individual”
Apesar da demora em encontrar soluções, os estudantes com deficiência seguem resistindo e cobrando seus direitos. Para eles, a acessibilidade não pode ser tratada como um favor ou um “privilégio”.
Herbert reforça que a maior barreira que enfrenta não é física.”Eu tenho lutado com unhas e dentes para poder ter acessibilidade aqui na faculdade. Chegar nesse elevador, chegar nesse laboratório. Eu acho que o elevador não é o problema maior de acessibilidade, porque o problema maior de acessibilidade é um conjunto de situações aqui. O elevador é só mais um detalhe importante, mas é só mais um detalhe.”









